segunda-feira, 5 de julho de 2010

O dia em que o mundo pegou fogo

Nas casas antigas, o flexível que ligava o ponto de água na torneira do lavatório era de chumbo. Não enferrujavam, eram flexíveis e depois de instalado, se você não mexesse com ele, era eterno. Mas em casa com duas crianças e que a menor era um capeta que vivia subindo na pia, acabavam por trincar.

Isso que aconteceu no banheiro verde lá de casa. Os banheiros eram denominados por cor, pois naquele tempo as casas não tinham suítes. Tinha o cor de rosa, que era de papai e mamãe e o verde que era o nosso. Devia ser por volta de 1957, eu com sete anos e meu irmão Tontônio com 10. Papai chamou o encanador para consertar o vazamento.
O conserto era feito com um recipiente de ferro fundido, onde você colocava álcool e tocava fogo e se chamava espiriteira. Aí aquecia uma peça de aço e passava no chumbo do cano. Derretia o chumbo e fechava o buraco. Tinham umas varetas de chumbo que quando o buraco era grande eram usada para fechar o mesmo. Estava o encanador fazendo esse serviço quando o fogo apagou porque tinha acabado o álcool. Nós estávamos acompanhando de perto o serviço apesar de papai sempre nos falar: "Fique perto de quem come e longe de quem trabalha", mas nesse dia não estávamos cumprindo o provérbio. O encanador pediu a papai, que tinha acabado de chegar, que colocasse álcool na espiriteira e ele não sabia que aquele troço estava quente. Quando o álcool chegou à espiriteira, o fogo subiu pelo jato do álcool e incendiou a garrafa e papai, no susto, jogou-a. Enquanto a garrafa voava foi saindo aquele álcool com o fogo junto e veio na minha perna e no corpo do Tontônio. Me lembro bem de papai correndo atrás dele com um roupão de banho para abafar o fogo, mas ele assustado corria mais duro e o fogo foi se espalhando. Em mim foi só na perna e lembro de ter ficado olhando meio abestalhado ele ir descendo pela minha coxa para a perna. Quando começou arder, levou alguns segundos, ele já estava chegando no joelho e com a mão eu o apaguei. Queimei só a coxa, mas o Tontônio queimou quase 80 % do corpo.

Começou um verdadeiro calvário para ele e um pouco, muito menos, para mim. Após vários dias tomando penicilina e mesmo assim infeccionando tudo, descobriram que a mesma estava vencida. Não tinha outro jeito. Tinha que ser removida toda pele queimada para poder retirar a infecção, pois não tinha como fazer a mesma regredir. Falavam até em risco de morte para o Zé e eu perder a perna. Aí entrou em cena o Dr. Romeu "carrasco" Albaneze. Me colocou em uma mesa, pediu que dois enfermeiros me imobilizassem e com uma gaze fez uma raspagem em minha perna. Contam que ele passava a gaze em minha coxa como se estivesse engraxando sapato e enquanto não saiu todo o pus e ficou em carne viva ele não parou. Aí passou uma pomada amarela e enrolou gaze em tudo e todos os dias tinha que trocar o curativo.
Lembro de falarem que tinha que cicatrizar de dentro para fora senão voltava a infecção. Ia desenrolando aquela gaze e quando chegava na parte que estava colada na pele vinha a dor horrível. Quando queria chorar, lembrava de meu irmão que estava com o corpo quase inteiro daquele jeito e segurava o máximo. No fim não dava conta e abria o berreiro, mas todas às vezes eu ia com o firme propósito de não chorar.

Já o Tontônio ficou todo enfaixado. Parecia uma múmia, inclusive o rosto. O curativo dele demorava horas e era uma coisa que só tia Rosita, casada com tio Alcides, conseguia acompanhar. Era um sofrimento violento. Quando chegava a hora de ir para o hospital, ficávamos em casa para diminuir o risco de pegar infecção, já começávamos a antecipar o que íamos passar e ficávamos apavorados.

Foram dias inesquecíveis. Mas tudo passa. Minha perna e as feridas dele foram cicatrizando, mas ele teve que ir a São Paulo fazer plástica em todo corpo para tirar os quelóides e tentar recuperar a orelha que ficou muito queimada. Mas ficamos bons. Eu, sem nenhuma seqüela, e ele com uma pequena deformação na orelha mas que não trouxe nenhum trauma. Quando solteiro era muito mulherengo, catava todas e se eu descuidasse, até as minhas. Como dizia aquele amigo, "Não era fácil".

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