O praxe, começou com Laura, era sair da maternidade e ficar em São Paulo até o bichinho completar 14 dias. Nessa data era feito a primeira visita ao Dr. Jamal. Ele fazia um exame clínico completo para ver se estava tudo em ordem, sem nenhum defeito de fabricação e dava as instruções que acompanharia a criança até aos 7 anos de idade. As vacinas, as vitaminas e tudo que tomariam. Quando chegamos com Beto lá, no primeiro momento, ele olhou seus pezinhos e falou:
- Que chalana! Vai ser lutador de karate.
Hoje o bichão calça 44 bico largo e dependendo do modelo 45. No decorrer dos exames, ele empurrou a pele do peito pro lado do pescoço, e apareceu uma covinha, como se, ao invés da pele estar solta tivesse um ponto que à fixasse mais profundamente a carne. Quando ele viu aquilo, primeiro brincou:
- Olhem, menino peixe, tem brânquias.
E depois explicou que ele tinha nascido com um defeito congênito e tinha uma fistula branquial, acho que era esse o nome. Perguntado se era problema, ele disse que, provavelmente teria que ser retirada. Com 3 anos iria começar a inflamar e aí teria que operar. Já gelamos. Queríamos saber quem faria a cirurgia e começamos com as perguntas idiotas e recebendo respostas iguais.
- Quem vai operar?
- O cirurgião!
- Mas qual?
- O que for o melhor na época. Mas parem com essas preocupações, que pode até não ser necessária a cirurgia.
- Qual a chance?
- Engenheiro é fogo. Medicina não é matemática. Não tem nada exato.
- Probabilidade não é exato doutor. Qual a chance? - Insisti.
Ai ele foi curto e grosso:
- 1%, chato.
Curto no 1 e grosso no chato.
Gelei. A cirurgia era feita por um especialista em cabeça e pescoço e a gravidade dependia de onde terminava a fístula, que nada mais é que um caninho de bitola muito pequena que dá comunicação do exterior com alguma parte ou órgão interno do corpo. Tem que ser retirada pois é um ponto de entradas de infecções. Sabíamos onde começava mas não sabíamos onde terminava. Com três anos, como previsto, veio a primeira infecção. Parecia que ele tinha um limão embaixo da pele. Levamos ele no Jamal que nos alertou:
- Começaram as infecções. Vamos dar uma chance, se voltar, teremos que nos preparar para a cirurgia, pois não podemos viver sob antibiótico.
Um mês depois veio a segunda. Quando fomos até ele, já nos avisou que o melhor cirurgião, na época, era o Dr. Josias de Andrade Sobrinho. Tínhamos que tratar dessa infecção e levá-lo ao Fleury para fazer um exame um tanto delicado. Introduzia um contraste pela brânquia e fazia a radiografia, para poder definir até onde ia o caninho. Assim fizemos e no dia do exame o gurizinho não parava de jeito nenhum. Estavam já pensando em fazer anestesia geral quando tive a idéia de fazer mais ou menos como papai e propor um jogo a ele. Ficava quieto sem chorar e depois do exame ganhava uma bicicleta de duas rodas. A vontade da bicicleta foi maior que o medo e ele deitou na mesa e ficou quieto. Mas o trem doía muito e por mais que ele quisesse não agüentou e começou a chorar. Aquele choro sentido, de dor realmente, mas deixou fazerem o exame. Terminado tudo, como ele não parava de chorar, ficamos preocupados. Ia infeccionar de novo, rompeu alguma coisa por dentro. Eu naquela preocupação toda, falei a ele:
- Pronto filho, já acabou tudo. Ta doendo em algum lugar?
Ele sem parar de chorar fez que não com a cabeça.
- Então pare de chorar se não ta doendo.
Quando ele disse:
- Mas e aí, você vai dar a bicicleta se eu parar?
Grande negociador, ganhou a mais linda da Sears e no mesmo dia.
A fistula ia pelo pescoço e conseguiram acompanhá-la até por trás da orelha. Aí não sabia se terminava ou era tão fina que o contraste não passava. Marcaram a cirurgia e o Jamal foi com gente no dia.
Quando perguntei se ele entrava na sala, respondeu:
- Nem amarrado. Não posso ver sangue.
A cirurgia correu as mil maravilhas e o médico explicou que retirou toda a fistula por um corte de dois centímetros, onde ela começava e deixou um dreno do comprimento da fistula retirada. Esse dreno tinha que ser retirado aos poucos para a cicatrização ser feita da parte mais profunda para a entrada. De três em três dias íamos ao médico para puxar 1 cm aquele dreno de mais de 15 cm. No primeiro dia o menino jurou que ninguém tocava no dreno. No início pensei em pear ele. Falei ao doutor:
- Eu sento, ponho ele no colo, prendo as pernas dele dando uma tesoura com as minhas pernas e no abraço, imobilizo os dois braços dele.
Ele deu uma risadinha, como se eu tivesse brincando e foi conversar com Beto. Quando viu que nem conseguia se fazer ouvir, achou que a manha era porque eu e Beá estávamos na sala e nos colocou para fora. Ficamos na sala de espera e parecia coisa de desenho animado. Aquela barulheira lá dentro de coisa quebrando e nós super preocupados, com o médico, não com o Beto. Depois desse piseiro todo que demorou uns 10 minutos o médico abre a porta e quase caímos duros para trás. O aro do óculos estava torto e no seu jaleco branco a impressão da sola da bota ortopédica do Betão. Ele se ajeitando falou:
- Viu como ele não chorou. Não foi fácil mas esta tudo como previsto. Volte daqui a três dias para o segundo round.
E assim foi. No final ele ficava quietinho. Já não doía mais, mas ele falava que estava ficando homem. Também não foi fácil.
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