segunda-feira, 31 de maio de 2010

Vovó Salma

Terminei o primeiro científico no Arquidiocesano sem fazer uma prova. Mas tinha tido um problema, não conseguia me alimentar com aquela comida. Tinha emagrecido uns 5 kg e se no inicio era magro, no fim era pele e osso. Quando vinha a comida e aparecia uns cabelos grossos no feijão, o pessoal se consolava dizendo que era do sovaco do cozinheiro. A alternativa era pior.
No segundo ano resolveram me colocar morando com vovó. Papai comprou um apartamento na Vila Mariana, e com 5 minutos de ônibus, eu estava no colégio. No começo foi um choque de idéias. Vovó já com 70 anos e aquela criação super rígida. Eu com 15 anos e morando já há um ano longe dos pais, se virando sozinho. Como dizia aquele amigo, "não foi fácil". Eu já na faculdade e ela querendo controlar onde eu ia, com quem ia, que horas ia voltar e assim por diante. E nunca fui de mentir. Saía a noite para estudar na casa de algum amigo e quando falava isso a ela, vinha sempre a resposta:
- Sou velha, não sou boba.
Ficava quieto e ia embora. Já nos sábados a mesma pergunta era respondida:
- Vovó sou homem e tenho minhas necessidades. Vou pegar umas minas.
Aí ela respondia:
- Olha o respeito menino, você não pode falar assim com a sua avó.
Não era fácil. Mas com o passar dos tempos as coisas foram mudando. Eu realmente estudava demais e em vários sábados ela entrava no meu quarto e falava:
- Netinho, hoje é sábado, não é dia de você dar uma saída e se distrair um pouco?
Era uma velhinha espetacular. Terminou de me criar dos 15 aos 22 anos. Ficamos super amigos. Vivia escutando suas historias, de como vieram do Líbano para cá.
Meu bisavô, Nicolau Maluf, foi muito rico, mas com 40 anos, depois de muita farra, bebida, jogos e mulheres, perdeu tudo. Casou com Sussena Murad e tiveram 8 filhos. Vovó tinha 8 anos quando vieram para o Brasil onde ele iria recomeçar. Eram 8 filhos. Não sei bem a ordem mas era mais ou menos assim: Chafia, Miguel, Wadi, Salma, Isabel, Nagib, Adélia e Olinda. A tia Chafia na viagem perdeu dois dedos no guincho da âncora do navio. Embarcaram juntos com o Jorge Maluf, primo irmão de meu bisavô, Nicolau, que viria a ser avô do Paulo Maluf. Ele seguiu viagem para São Paulo enquanto os nossos desceram no primeiro porto brasileiro, que era Corumbá, para acudir a tia Chafia, que teve os dedos amputados no próprio navio e precisava de maiores cuidados médicos.
A primeira residência deles foi em Ladário. Montaram uma lojinha de armarinhos. Enquanto o pai ia para São Paulo fazer as compras, Tia Chafia e vovó tomavam conta "do lojinha". Tudo estava indo muito bem quando, num certo dia, entra um marinheiro bêbado na loja. Tia Chafia era muito bonita e um marinheiro quis abusar dela. Em Ladário, a 6 km de Corumbá, fica a base naval da Marinha. Tio Wadi, então com 10 anos, tinha uma garrucha 22 de um tiro só escondida embaixo do balcão, daquelas que você descangota, enfia uma bala e fecha. É de ação simples e para disparar tem que engatilhar. O marinheiro quando viu um garoto armado mandando ele sair, deve ter achado que a arma ou era de brinquedo ou estava descarregada, e partiu para cima dele. Tio Wadi deu um passo para trás para poder engatilhar a garrucha e nisso o marinheiro pensou que ele ia correr, e pulou sobre ele. Ele juntou a garrucha com as duas mãos, fez pontaria e mandou. Foi um tiro perfeito, pegando no meio da testa, bem entre os olhos. O cara desabou mortinho no chão. Depois disso a família toda teve que se mudar. Ficaram com medo de fazerem alguma maldade com aquela "turcaiada", e foram para Cuiabá.
Lá se meteram no Garimpo até que apareceu meu avô, Elias Nemir, que era do mesmo lugar da minha avó, o Zahle. Ele tinha 30 anos e era professor de francês e ela 14 quando se casaram. Bom essa sim podia falar: "Não é fácil"

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Angico

A primeira vez que vi a fazenda Angico eu estava com meu cunhado Pedro na fazenda do meu sogro Santa Rita. Ela é vizinha de cerca e ele estava formando uma invernada que ficava na divisa. Quando vi a fazenda ele comentou que era a melhor da região. Terra boa, solo profundo e sem pedra, pelas palavras dele, um espetáculo. Só tinha um problema, era do Dr. Helio Martins Coelho, um dos maiores pecuaristas do estado e ele não vendia de jeito nenhum.
Nós já tínhamos Rancho Alegre e Campo Salma. Dois ou três meses depois, o Zé Alberto, meu primo, chegou no meu escritório falando que o Dr. Helio Coelho estava vendendo a fazenda 72, que era vizinho de Rancho Alegre e "vizinho vendendo, a gente compra". Como o preço era bom, pedi que ele conseguisse uma carta de opção com o proprietário. Depois de reclamar muito, dizer que isso era frescura minha e mais um monte, foi atrás da carta. E não voltou mais. Uns dias depois, encontrando-o na rua perguntei da porra da carta. Ele muito sem graça respondeu:
- Essa sua boca... Ele não estava vendendo a 72. É outra fazenda.
Eu já puto, pois me lembrei que ele queria que eu fosse ver a fazenda e fazer proposta sem a mesma estar a venda, não sei porque, perguntei:
- Qual é a fazenda?
- Angico, ele respondeu.
- Pega a opção assim mesmo. Vamos ver essa coisa de perto.
- Mas não é vizinha. Você vai é fazer eu perder tempo.
Insisti com ele. Eu já conhecia e tinha interesse. No dia 22 de dezembro ele me trouxe a carta de opção válida até o dia 31 de dezembro. Eu estava com uma febre de 38 graus que não passava por nada e como me cansava a toa, o Dr Domingos pediu uma radiografia dos pulmões. Pneumonia dupla. Antibiótico e cama. Ia vencer o prazo da opção e eu sabia que existia um grupo forte interessado na área. No dia 29 de dezembro, como a pneumonia não cedia, fomos a Campo Grande. Zé Alberto, Zé Antonio, meu irmão, a pneumonia e eu. Os dois na frente e eu deitado no banco de trás. Tinha que ficar deitado, não especificaram que a cama não podia se mover.
A fazenda tinha 1300 hectares e a pedida era equivalente a 150 U$ por hectare. Juntando tudo que tínhamos não dava a metade. O homem tinha que nos dar prazo e com o preço acertado em dólar não teria reajuste. Ele ficou muito relutante em vender e entregar a terra sem receber o valor integral. No último dia do ano de 1989, depois de dois dias de negociação, ele nos chamou e fechou o negócio pelo preço pedido, nos dando o prazo que quiséssemos, só a comissão do Zé que ele quis que nós pagássemos. Depois de acertado tudo que ele abriu o jogo. Não fechou negócio antes porque queria informações nossas e ele só conseguia de papai. Finalmente conseguiu falar com seu procurador, o Waldemar Lins que disse a ele:
- Pode fazer o negócio que você quiser com esses meninos. Eles são iguais ao pai que eu endosso independente do valor.
Depois de fechado o negócio, estávamos na porta do escritório do Dr Helio quando meu irmão virou pra mim e disse:
- Eu vim até aqui só para você não falar que não comprou por minha causa. Mas não era para comprar!!
Não entendi nada. Eu na maior alegria e ele na maior preocupação. Pagamos até o último centavo e somos gratos até hoje ao Sr. Waldemar Lins. É a minha menina dos olhos. Realmente o Pedro tinha razão. Não existe nada igual na região, quiçá no Brasil. Meu capataz brincava comigo que quando começava a chover ele não conseguia dormir com o barulho da braquiaria crescendo. Não tem quem vai lá e não se encanta. Com o passar dos anos fomos adquirindo os vizinhos, que como diz Zé Alberto, "vizinho vendendo a gente compra", e hoje ela tem 3500 ha. Como Piratininga no Pantanal, Angico na parte alta é a minha preferida.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Arquidiocesano

Quando eu terminei o ginásio, convenci papai de me mandar para São Paulo para fazer o científico. Ele de início ficou meio relutante, pois eu só estudava com mamãe me cobrando o dia inteiro. Ele não acreditava muito que, com a minha orelha longe da boca de mamãe, a coisa funcionaria. Mas pedi uma chance. Se não desse certo eu voltaria. Ele achava que eu com 14 anos não tinha maturidade para ficar sozinho. Concordou por fim, e me colocou interno no Colégio Arquidiocesano de São Paulo. Era tido como o melhor da época e se o cara não ralasse levava pau. Não davam moleza pra ninguém. Minha sorte foi ter escutado, não sei se sem querer ou não, ele era muito inteligente e me conhecia bem, ele dizendo a mamãe que achava que não ia dar certo, mas todo mundo merece um voto de confiança. Disse ainda:
- Ele entrou antes da hora na escola. Se perder um ano ele amadurece.
Naquele momento assumi o compromisso comigo mesmo. Me mato de estudar mas volto como um dos melhores desse Arquidiocesano de merda. Embarquei no trem em Corumbá e me lembro, como se fosse hoje, dos dois abraçados na estação dando adeus. Fiquei na janela até eles desaparecerem. Estava com meu primo Edson. Ele ia ser o responsável por mim na viagem. Ele já era experiente, fazia cursinho para engenharia. Na hora que fiquei sozinho na cabine, balancei com o trem, mas um balanço interno, na minha fé. Veio a pergunta: "Será que vou fazer merda? Vou conseguir estudar sem mamãe?"
Quando cheguei no colégio fiquei impressionado e com medo. Era muito grande. Tinha um pátio interno com uma baita igreja dentro dele, praticamente só para os alunos. O dormitório devia ter uns 12 de largura por uns 30 de comprimento. Ao lado de cada cama tinha um pequeno armário, que chamavam de cartola de mágico, pois você tinha que colocar tudo seu dentro daquele armariozinho. O banheiro era enorme também. Devia ter uns 10 chuveiros e 10 cagadores, como chamávamos os WC. Tinha uns 40 internos lá de todos os lugares do Brasil. Só de Corumbá, que eu me lembre, estavam o Roberto Spadella, Oneir Oliveira, Walter risca faca, Olavo Oliveira Lima e Geraldo Bunlai, esses do primeiro ano. Do segundo ano, lembro de Zé Wagner e Ulisses Medeiros.
Mas era um colégio que você se orgulhava de estudar nele. Minha estrela brilhou desde a chegada. Como estava atrasado uns dois dias, peguei o melhor colega meu do ginásio, o Olavo de Oliveira Sobrinho, para estudar comigo e me explicar a matéria que tinha perdido. Com isso comecei a estudar com ele, que era no ginásio o melhor aluno do Santa Teresa. De colegas ficamos super amigos.
O internato tinha o seguinte horário:
6:00 toque da alvorada. Normalmente com música que o irmão Miguel, responsável por nós, punha para tocar. Sempre Ray Conniff.
7:00 café da manha
7:30 início das aulas
11:30 término das aulas
12:00 almoço e sesta
14:00 estudo da tarde
15:30 recreio
16:00 continuação dos estudos
18:00 banho
19:00 jantar
22:00 dormir
Depois da janta até a hora de dormir era livre. Praticamente eu e o Olavo usávamos para rever as tarefas das aulas do dia seguinte. Estudávamos pra cacete. Fazíamos tudo que nos mandavam e se terminávamos antes íamos procurar fazer mais. Viciamos em estudar. De tarde fazíamos todas as tarefas que foram passadas no dia e a noite revíamos a do dia seguinte.
Tinha uma condecoração de "Honra ao Mérito" , que era concedida para os três melhores alunos do mês. Era uma prova por mês, 7 por ano. Quem fizesse 49 pontos, ou media 7, passava sem os exames finais. Media 5 ia pro exame e tinha que tirar media 5 no geral, onde os pesos eram iguais, a nota do exame e a media do ano. Abaixo de 5, levava pau. Isso para cada matéria, que eram 6 ou 7, não me lembro mais. Pau em uma repetia o ano. Depois que apareceu a 2a. época, recuperação e outras molezas mais. A classificação era na média geral, mas não podia ter nenhuma vermelha, ou seja abaixo de 5. Disputava as medalhas com dois carinhas: Sinobu Fuji Kataiama, um japonês que era interno com a gente e Mario Baldini, esse era semi-interno. Mas não sai da trinca nenhuma vez nos 4 primeiros meses.
Nas férias de julho cheguei à Corumbá todo garboso, e com as medalhas de Honra ao Mérito no bolso. Entreguei para papai e o mesmo não deu muita atenção. Fique meio decepcionado e fui reclamar com mamãe. Dei um puta duro e papai nem deu bola. Ela me consolou, falou que ele era assim mesmo. No dia seguinte a minha chegada fui até o Marinho onde ele trabalhava. Antes de encostar, percebi que ele mostrava alguma coisa para os amigos da roda. Quando cheguei perto vi que eram as medalhas. Fiquei super feliz. Ele tinha medo de elogiar muito e eu achar que já tinha mostrado do que era capaz e relaxar. Assim era papai.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O Castigo

Sobre Daniel e Guilherme posso dizer, como dizia aquele amigo meu, que "não foi fácil" criá-los. São os reis do apelido: dentro de casa são Dani e Gui, fora tem Faísca e Fumaça, Felpudo e Seqüela, e ainda Guilherme, que nasceu depois, gosta de chamar Daniel de Clone.
Desde os três anos lutavam o dia todo. Chegava da Mecânica Pesada para o almoço, ia tirar uma soneca para ajudar a digestão, implorava a eles que não fizessem barulho por 15 minutos e normalmente acordava antes disso com um rufando a cabeça do outro na porta do meu quarto. Não tinham jeito mesmo.
O pior aconteceu quando eles tinham por volta de 13 anos. Já morávamos em Corumbá. A brincadeira besta começou quando eles subiram no telhado de casa, junto com um primo que hoje é nosso advogado, Gustavo, e de lá atiravam grampo com um elastiquinho no pescoço de quem passava na calçada. O coitado achava que tinha sido picado por uma abelha e saía se abanando todo e os três rachavam de dar risada. O Gui resolveu mudar o jogo. Iam atirar pedrinhas no teto dos ônibus que passavam para assustar os passageiros com o barulho. Para aumentar o barulho, o tamanho das pedras foram aumentando, até que faltou força e estouraram o pára-brisa do ônibus. Paguei os prejuízos materiais mas não conseguia entender como dois meninos bem criados estavam se tornando, não digo marginais, mas moleques sem nenhuma educação. Apesar de eu nunca ter ficado de castigo, aquele acontecimento merecia uma atitude dura minha.
Tinha que castigá-los. Pensei muito e resolvi separá-los. Já era uma parte do castigo. Um ia para a fazenda Angico limpar pasto. Tinha uma invernada que estávamos destocando e um trator puxando uma carretinha juntava os paus num lugar só para queimá-los. O Gui foi para lá. Ordem pro Dorival, nosso capataz: trate-o como homem e peão, não filho do dono. Comer igual a todo mundo e mesmo horário de trabalho. O Daniel foi para exportadora carregar os caminhões. Ordem para o responsável do deposito, que era um militar que tinha acabado de dar baixa do exército: Trate-o como carregador.
Nos horários vagos, hora de almoço e depois da janta, tinha que preencher todas as linhas de um caderno brochura de 100 folhas, frente e verso, com a frase: "de hoje em diante não serei mais moleque". Não podia usar mais que uma linha nem pular. O castigo acabaria quando todas as linhas fossem preenchidas. Estávamos em dezembro e o acontecido foi no primeiro dia de férias. Lá pelo dia 18, duas semanas nessa batida, eles me avisaram que tinham acabado. Estranhei da simultaneidade. Peguei o caderno do Daniel, folheei todo e já percebi que da 2a folha em diante, de três em três linhas as letras eram iguais.
O fdp peou três lápis juntos e escrevia três linhas de cada vez. Fiquei quieto pois a regra não proibia isso. Apesar da vontade não esbocei o mais leve sorriso. Peguei o de Guilherme e na hora percebi que estava mais fino que o do Daniel. Na capa do caderno para azar deles estava escrito, e bem escrito: 100 FOLHAS.
Contei uma por uma e quando estava pela metade, já vi que o bichinho tava branco que nem uma cera. No 79 acabaram-se as folhas. Quando olhei pro Daniel ele estava pálido também. Resolvi pegar seu caderno e contar as suas folhas. Quando comecei ele não agüentou e falou pro Guilherme:
- Não disse, seu veado, que isso tudo ele ia perceber. Pode parar pai que arranquei só 10. Vou fazer esta noite.
Fiquei muito puto, mandei comprar mais dois cadernos, agora de 200 folhas, proibi escrever com 3 lápis e começaram do zero. Foram salvos pelo Jean Batiste. O Jean é filho de um grande amigo meu, o George Pion. Ele é francês e quando chegou ao Brasil nós trabalhamos juntos e nossas famílias ficaram muito amigas. O Jean que não conseguia falar Guilherme, só o chamava de "outro Daniel", era um sarro. Como eles vieram da França passar o fim de ano com a gente liberei antes o fim do castigo para não castigar o Jean por tabela, mas escreveram bem mais do que as folhas que eles arrancaram. Acho que aprenderam, pelo menos pedra em ônibus eles nunca mais atiraram.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Cirurgia

Eu já falei de meu primo Zé Alberto, quando escrevi Vermelha ou Preta. Essa ele me contou em uma das nossas muitas viagens. Andávamos sempre juntos pros leilões ou comprando gado de particular que ele arrumava. Ele estava recém formado e chegando em Corumbá. O pai dele, novo ainda, cuidava de tudo e ele abriu o consultório. Era veterinário. Seu primeiro cliente foi uma figura folclórica aqui na cidade, seu Hugo, e como vivia com um cachimbo na boca e para diferenciar de outros Hugos, não sei porque - eu não conhecia nem um outro, ficou Hugo Cachimbo. No primeiro dia, aparece o homem com um leitãozinho debaixo do braço, ele era meio gordo e o leitão se confundia com ele. O Zé quando o viu, perguntou o que ele tinha ido fazer lá? O cara já emputeceu e disse:
- Me consultar que não é. Meu leitão esta com uma hérnia e quero que você opere.
O Zé ficou super contente e preocupado também. Primeiro cliente e já uma cirurgia. Inauguração completa da clínica. Mandou preparar imediatamente a sala de cirurgia, resolveu chamar o Dr. José Carlos, outro veterinário só que de grandes animais, para ser seu instrumentador e o Dr. Moises, esse médico de gente, para anestesiar o porco. Quando o Hugo viu toda essa arrumação, perguntou:
- Doutor José Macaca (e carregou no doutor), quanto vai me custar essa brincadeira?
O Zé fez as contas em voz alta e se fosse em dinheiro de hoje seria algo assim:
- Cirurgião 130, anestesista 100, esse Moisés é careiro e não quer saber se é bicho ou gente diz que é tudo o mesmo preço, ele cobra por hora, assistente 70. Vai dar tudo uns 300.
Nisso o Hugo se levanta, cata o porquinho que estava no colo do Zé, põe em baixo do braço e fala:
- Ô meu, mais caro que o porco!
E foi-se embora.
Hoje na cidade a expressão "Mais caro que o porco" e mais usada que "pia de água benta".

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Daniel, O Forte II

Beá teve alta da maternidade 5 dias após o parto. Saímos sozinhos, os dois gurizinhos estavam bem abaixo do peso mínimo para alta. Daniel que nasceu com 2.550 mas teve problemas estava com 1.930, e Guilherme que veio com 2.250 estava com 1.950. Ficariam na UTI até chegar nos 2 Kg, o que na época era considerado o mínimo para alta. Isso demorou uns 10 dias e mais uma vez meu sogro me acudiu. Tinha me preparado para os gastos do parto baseado nos partos de Laura e Beto e era algo mais ou menos nessas proporções: tinha guardado uns 10.000 reais. No dia da alta veio a conta, alta também: 100.000 reais. A promater falou que podia facilitar em até 10 vezes. Mas eu economizei os 10.000 em 6 meses! Pedrinho falou:
- Eu pago e você acerta comigo depois, como puder.
Dei os 10 e ele os 90. Saí endividado mas todo feliz com meus dois gurizinhos.
Fomos direto ao Jamal. Depois de examinar os dois ele disse:
- Guilherme, nota 10. Daniel tem um sopro no coração.
- Que merda é essa agora? - deixei escapar - Tem jeito?
Ele quis nos tranqüilizar e disse:
- Até ele completar seis meses não tem o que fazer. Só monitorar. Com seis meses deve fechar sozinho.
- E se não fechar? – perguntei.
- Vai fechar, você vai ver. Porque que você tem que pensar sempre no pior?
Gelei. Quando ele dava esses tipos de resposta é porque a outra ninguém iria gostar. Mas eu já sabia que não adiantava insistir pois ele não falaria. Já tinha acontecido isso uma vez. Laura teve uma febre de quase 40 graus e eu perguntei o que deveríamos fazer se ela tivesse convulsão. Ele bateu na mesa três vezes e disse:
- Ela não vai ter convulsão.
Ai eu disse:
- Certo, eu também acho, mas na hipótese de ....
Ele me interrompeu, bateu três vezes na mesa e disse:
- Você não me escutou. Ela não vai ter convulsão e não vamos mais falar disso.
Então eu sabia que não adiantava insistir... Achei que já tinha passado por tudo mas agora mais essa. Na volta para Taubaté, em um corcel 76, balança, duas crianças, Beá, Pedrinho e Odilza, parecíamos pau de arara. Estávamos eu e Beá na frente, com um dos gêmeos no colo, naquela época o Moises só servia em restaurante, Pedrinho e Odilza com o outro no colo atrás, e mais todas as parafernálias deles. Pedrinho no meio do banco, pergunta:
- Odilza a minha costela não esta machucando o seu cotovelo?
- Não Pedrinho.
E responde sem nem perceber que ele estava pedindo para ela tirar o cotovelo dali. Estávamos preocupados mas felizes. Tínhamos passado por momentos difíceis e íamos superar mas aquele também.
Jamal mandou alimentá-los de 2 em 2 horas, dia e noite. Tinham que chegar nos 3 kg e só depois disso poderíamos cortar o leite da noite. Meus sogros ficaram com a gente até que isso aconteceu, o que demorou uns 20 dias nos quais pesávamos eles todos os dias. Era uma pscicada violenta. Eu sabia o peso de uma mijada ou uma cagada com precisão de gramas. Nos dias em que ganhavam as 40 gramas programadas era uma festa, quando não, uma preocupação só. Mas 6 meses passam rápidos e com todo mundo rezando, não tinha como não dar certo.
A casa era uma loucura. Não tinha fralda descartável na época e todos estavam mamando e fazendo coco nas calças. Laura a mais velha é de 9 de fevereiro de 74. Eles são de 2 de fevereiro de 77 e Beto de agosto de 75. Ou seja a mais velha completou 3 anos com os dois na maternidade. O varal era só fralda. A geladeira era mamadeira em todos os lugares. Beá e Odilza não faziam outra coisa que não fosse dar de mamar e limpar criança cagada. Como dizia meu amigo aqui de Corumbá: - Não é fácil!
No fim esses seis meses foram muito longos. Pareceram seis anos. Mas como tudo na vida se passaram. Éramos acompanhados por um cardiologista infantil, que se chamava Boca Negra, um chileno ou peruano indicado pelo Jamal. Ele receitou meia gota de não sei o que para o Daniel e quis dar uma de esperto com Beá, perguntando se ela sabia cortar a gota em duas. Beá respondeu que sim e, como o remédio era caro, gozei ele perguntando se podia dar a outra meia no dia seguinte. Éramos muito novos, eu já tinha 26 e Beá 22 anos, mas já éramos práticos de filhos. Pingava a gota em um recipiente com água e jogava a metade fora. Esse Boca Negra!!
Completando os seis meses fomos ao Jamal. Outra cena marcada para sempre em minha memória. Aquela criança de seis meses deitada quietinha na maca, Jamal com o estetoscópio, quase deitado sobre ele, de olhos fechados e um silêncio por 5 minutos. Beá de olho no Daniel e eu no médico. Ele abre só um olho, mira em mim, vê que estou olhando pra ele e fecha de novo. Aí com os olhos fechados ele abre um puta sorriso. Nunca pensei que poderia achar um sorriso de homem, e barbudo ainda, tão bonito. Foi um sorriso inesquecível. Como ele vivia tirando sarro da minha cara e eu sou um pessimista, continuei tenso até que ele se endireitou e disse:
- Não escuto mais nada, podem relaxar que ele ficou bom. Passamos por essa.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Toma papudão

Mamãe tinha sido operada e estávamos nos revezando no hospital para não deixá-la sozinha. Meu turno tinha acabado e minha filha, Laura, lógico, a única que tenho, foi ao hospital me buscar. Já era meio tarde, estávamos com muita fome e íamos jantar. Estávamos no corredor já indo quando vimos o Alaer chegando. A Laura me falou:
- Vamos pai que estou morrendo de fome. Se você engrenar no papo e começar a falar de filosofia agora com o Tio Alaer estou ferrada.
- Vamos só cumprimentá-lo, rapidinho.
Alaer é um médico casado com uma prima, Zita, que gosta muito de filosofia. Bom de papo, mas de conversas longas. Laurinha já o conhecia e não acreditou no meu "rapidinho". Mas não tinha jeito, ele estava na linha de fogo e é meu amigo. Quando ele nos viu já foi falando:
- Olha os dois engenheiros aí. Faz horas que eu queria vê-los juntos que estou com uma dúvida matemática.
Abracei-o olhando para Laura e com a expressão "tá vendo, não é só filosofia, ele também gosta de matemática".
- Fala Alaer, qual a dúvida?
Já ia completar com um matemática é com a gente, já filosofia não entendemos nada, quando ele falou antes:
- Como vocês vêem os números?
Falou olhando para mim e depois para Laura. Primeiro fiquei sem entender. Olhei pra Laura, pra ver se ela me socorria, ela só deu uma levantada de ombros. Respondi:
- Vejo os números como uma coisa importante, que permite relacioná-los com as quantidades de alguma coisa, sei lá.
Olhei para Laura que só repetiu a levantada de ombros.
Aí ele disse:
-Não!! Quero saber como você tem os números em sua cabeça?
Já falou isso com uma cara de contrariado, daquelas de "como você é burro e materialista".
Resolvi inverter e passar de perguntado a perguntador e falei:
- Me diga Alaer, como você vê os números?
Olhei para Laura que já estava ficando verde, não sei se de fome ou de raiva. Terceira levantada de ombros. Quase falei para ela que não estava ajudando muito. Ele olhou para mim e com a mão, com os dedos juntos, começou a fazer um desenho no ar dizendo:
- Começo com o um da direita pra esquerda,(nesse sentido mesmo), vai na linha de baixo até o 19, aí volta por cima, com uma leve curva e vai até o 45 passando pelo 38 por cima do um e volta, vai nesse zig zag até o 120 e aí explode.
Olhei abestalhado pra ele e quando olhei para Laura, ela só falou:
- Toma papudão!!
Mas o Alaer é um cara que você sempre lembra dele nas horas difíceis, pois está sempre pronto para te ajudar. Quando papai quebrou a perna, ele viu minha cara de apavorado de ter que acompanhá-lo dentro de uma UTI aérea e falou para mim:
- Deixa que eu vou. Sou médico e posso ser mais útil que você.
E embarcou com a roupa do corpo. Tenho certeza que "o ser mais útil que você" foi para que eu pudesse justificar para mim mesmo o fato de estar sem coragem de acompanhar papai nessa viagem. Ele lê mentes.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Sufoco

Acho que foi um dos maiores sufocos que passei na vida. Só não foi o maior porque estava muito bem acompanhado, mas foi uma situação incrível. Estávamos na fazenda Piratininga e testando o equipamento de internet via satélite. Já estava escuro, quando veio a notícia de que o filho do capataz de Santa Cristina, um retiro da fazenda, estava passando mal. Assuntado pelo rádio de qual eram os sintomas, veio a informação de que estava com pelamonia, não tem erro ortográfico. Esse pessoal de fazenda só tem problema de dor no figo (fígado), pelamonia (pneumonia) e nó nas tripas, que não sei o que é. São todas as doenças que eles conhecem.
Como tinha um empreiteiro, o Koko, que estava de carro, pedimos a ele que trouxesse o doente para a sede. Estávamos achando que era alguma dor de barriga besta. Como Daniel, meu filho, e o José Francisco, gerente das fazendas do Paiaguás, são veterinários achamos que os dois conseguiriam dar a volta no problema. Quando o rapaz chegou, era um garoto de 14 anos, e já estava desacordado. Depois de tentarem reanimá-lo, sem mais nem menos o guri teve a primeira parada respiratória. A situação era a seguinte: estávamos na sala de almoço, eu sentado na mesa com o note book em rede e a única pessoa que estava on line no msn era a Lívia, esposa do Daniel. O doente no chão, com os dois veterinários imundos, tinham passado a tarde toda no mangueiro e ainda não tinham tomado banho para jantar, sobre ele. Os pais do doente do lado de fora, na porta da sala.
Daniel percebeu a parada e quando falou o Zé Francisco diagnosticou que era intoxicação. Perguntaram aos pais o que ele estava fazendo e veio a confirmação. Estava mexendo com um veneno para mosca. A situação era grave. Pelo msn pedi que a Lívia contatasse por telefone a Flavia, médica de gente e casada com um sobrinho. Com massagens e soprando a boca do guri, tiraram ele da parada respiratória, mas em dois minutos veio outra. O Daniel começou a ficar nervoso e a coisa foi se repetindo a intervalos de tempo cada vez menores. A cada parada, a barriga encostava nas costas e começava a roxear os lábios. O Daniel que estava monitorando ele com um estetoscópio começou a apavorar todo mundo dizendo que o coração estava batendo muito fraco. Tudo isso foi passado para a médica que, concordando com o diagnóstico dos veterinários, mandou tirar a roupa do guri e lavá-lo com água e sabão para tirar todo o veneno do corpo. Deixaram o guri de cueca e entraram com mangueira e sabão em pó, e esfregaram ele com vassoura. O Zé Mauro que tinha acabado de chegar e não sabia da gravidade da situação veio com a piadinha de "aproveita e lava a sala" pois isso acontecia ainda dentro da sala de jantar.
O José Francisco, que tem uma memória incrível, começou a passar todos os remédios que tínhamos disponível para a Flávia. Foi quando o guri resolveu fazer uma parada cardíaca. Aí Daniel foi a loucura. Um fazia respiração boca a boca e o outro massagem cardíaca. Isso com o pai e a mãe assistindo tudo. Lembro dos gritos do Daniel:
- Parou Zé, a porra parou!! Caralho, vamos perder ele!!
Eu transcrevia no msn tudo que estava vendo e ouvindo ipisis litiris. Depois me confirmaram que a Lívia, que recebia as mensagens, repetia do mesmo jeito para a Flávia. Então uma merda dita lá, chegava integralmente aos ouvidos da médica. Veio a primeira informação assustadora da Flávia:
- Se não der atropina, acho que esse era o nome, ele não vai aguentar.
Gritei pro Zé:
- Tem atropina , Zé?
- Veterinária.
Digitei rapidamente o veterinária e ela:
- Qual a concentração?
A porra do Zé tinha tudo na cabeça e dado a dosagem ele saiu correndo para pegar o medicamento. Chegou esbaforido e disse:
- Tá vencido!
Digitei a informação e a resposta foi:
- Mas que porra!
Ele teve a segunda parada e nesse momento a Flávia deu a ordem:
- Soquem atropina vencida mesmo. Põe no soro e aplica. Muito cuidado que o batimento cardíaco vai aumentar e não pode passar de 160 de jeito nenhum.
Para achar a veia do guri com agulha de vaca foi um parto. Furaram o bicho inteiro. O nervosismo era muito grande e quando eu via aquelas mãos com as unhas todas pretas de sujeira eu pensava: - se sair dessa esse cara vai morrer é de tétano. O Zé Mauro chegou com uma corda de armar rede, deu pros veterinários e falou:
- Façam um garrote no braço.
Finalmente acharam a veia e socaram a atropina nele. No começo, como ele tinha tido a terceira parada, deixaram o soro correr aberto, direto. O batimento que estava baixo e irregular começou a firmar quando eu lembrei que a médica disse para monitorar o batimento. Quando chegou em 90, começaram a diminuir a dosagem mas o negócio foi aumentando muito rapidamente. Quando chegou em 120, ela mandou interromper a aplicação mas o trem foi a 220. O Daniel só falava:
- Fodeu, agora fodeu!
Mas não era o dia do menino. O batimento foi normalizando e depois de algum tempo ele estava tranqüilo. Dormiu no chão, no colo de Daniel, com Zé Francisco ao lado. No dia seguinte tivemos que mandar o avião levá-lo para tomar soro antitetânico. Na hora do embarque, o Zé Mauro, nosso piloto que é uma peça rara, que na noite, após a sugestão de embalar na limpeza e lavar a sala, deu a idéia do garrote e sumiu, tirou uma caneta bic do bolso, sem a carga, e disse:
- Ó, já estava no jeito ontem. Se vocês não tirassem ele daquela parada respiratória, eu ia fazer uma "trasqueotomia" nele. É só encostar essa caneta aqui, bem embaixo do pomo e dar uma cacetada firme. Ele respira pelo tubinho.
Falou isso com a cara mais séria o mundo, mas como conheço bem ele, só podia ser gozação. Não entendi a bic sem carga no bolso. Quando fui falar com a mãe do menino, perguntar se ela estava bem, fiquei abestalhado com a resposta. Ela disse:
- Óia seu Tadeu, quando vi o senhor no computador dando todas aquelas informações, o Daniel naquela preocupação e nervosismo todo e seu Zé, que salva tudo quanto é "animar" da fazenda, tinha certeza que ia dar tudo certo.
E graças a Deus, deu "memo".