segunda-feira, 30 de maio de 2011

Aparelhinho assoprador

Era o aniversario de minha neta Lara e estava na roda dos homens. Corumbá é assim, quando se reúne numa festa, existe um aparte geral, os homens ficam numa roda e as mulheres em outra. É o único lugar que conheço onde isso acontece. Até para dar volta de carro, se você pega um outro casal, vai os homens na frente e as esposas atrás. Mas estávamos falando da enchente do pantanal, quando começou uma discussão de qual seria a velocidade do rio Paraguai. Todo mundo chutava um valor e cada um vinha com uma história para provar que estava certo. Sabiam o tempo que a água demorava para ir de um lugar a outro mas não tinham a distância, ou tinham o tempo de um barco de subida e o de descida e a distância entre dois pontos mas nos enrolávamos nos cálculos. Lá pelas tantas um tio da minha nora, meu amigo Armardo Lacerda, garantiu que ele sabia, pois já tinha "MEDIDO" a velocidade do rio e o medido saiu na entonação de letras garrafais mesmo. E explicou como. Estava na sua lancha São Pedro quando o motor pifou. Sabia que com mais uma partida ele funcionaria por alguns segundos antes de pifar definitivamente. Conhecia aquela lancha, companheira de muitas viagens, há anos e sabia desse seu último suspiro. Esperou o momento oportuno, deu partida na bicha, e socou o pau para cima de um camalote gigantesco que vinha rodando, encalhando sua lancha ali e veio com ele rio abaixo. Não entendi de porque de colocá-la em cima do camalote, mas o assunto era outro. Como não tinha mais o que fazer, veio fazendo contas. Media a distância entre dois pontos, cronometrava o tempo e ai, "todo mundo sabe, velocidade é espaço dividido pelo tempo". Fez as contas e garantiu que a velocidade era superior a 6 km por hora. Eu, que não tinha me manifestado ainda, puxei o meu iPhone e dei uma goolgada. Entrei com "velocidade do rio Paraguai" e consegui descobrir que um dos rios mais rápidos que existem é o Paraná e na região das corredeiras ele atinge a "incrível" velocidade de 1m por segundo, ou seja, 3,6 km por hora, um pouco mais da metade da velocidade que o companheiro achava que corria o Rio Paraguai, um dos rios mais mansos do país, que de Corumbá até o mar tem menos de 100 metros de declive. Mostrei a ele o resultado e terminamos a discussão.

Uns 10 dias depois, coincidentemente, estava a mesma turma reunida no Mac Tom para jantar e ver o show da Rita Lee, quando começamos a discutir a idade dela. O Carlão falava que ela tinha quase 70 e eu que não chegava nos 65, e isso tudo com o Armando só ouvindo. Lá pelas tantas, com o Carlão fazendo as explicações do porque ele sabia que ela era muito mais velha do que ele, eu puxei meu iPhone e resolvi dar uma goolgada. Na hora que o Armando me viu digitando no telefone, ele vira para o Carlão e fala:
- Pode parar de discutir que ele tem um aparelhinho que assopra tudo para ele.
Foi uma risada só. Nem precisava ter perdido tempo, pois durante o show a Rita Lee revelou sua idade. Era de 1947 e tinha 64 anos, conforme o aparelhinho tinha me assoprado.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Tremembé

Era julho de 1974 e estávamos em Corumbá de férias. Éramos só Bea, Laura e eu. Lembro-me da viagem de São Paulo para Corumbá, o carro era um Maverick azul, com Tontonio e Lenir juntos. Fralda descartável era artigo de luxo e só utilizado nessas ocasiões. Não tínhamos essa consciência de hoje, de não poluir o meio ambiente, e Laura com 5 meses era trocada a cada duas horas e as fraldas usadas, lançadas ao vento. Nas férias aconteceu algo fora do nosso controle e que mudou totalmente a nossa vida. Apareceu uma epidemia de meningite em São Paulo. Por telefone, consultamos Jamal sobre a possibilidade de voltar com a Laura para lá quando ele nos aconselhou que esperássemos mais 30 dias. Foi a gota d'água. Juntou com meu descontentamento com a Bardella e a vontade de fazer engenharia civil para um dia voltar a Corumbá, para resolvermos mudar para o interior de São Paulo onde tivesse uma escola com curso noturno. Pensamos em São Jose dos Campos primeiro, mas a Mecânica Pesada, concorrente da Bardella era em Taubaté, e lá tinha a UNITAU, uma universidade com as características que estava procurando. Uma semana antes de terminar as férias, voltamos para São Paulo com objetivo de mudar de lá e de emprego. Sem ter visto anúncio procurando por engenheiro e sem conhecer ninguém, na cara e coragem, fui ao escritório comercial da empresa em São Paulo. Aí que minha estrela brilhou. Estava na recepção, conversando com a secretária e explicando a minha situação, quando o Diretor comercial, Artur Teixeira, ouviu tudo e me pediu que fosse a Taubaté para uma entrevista com o gerente do Depto de engenharia, o eng. Ivan Chu. Ele mesmo ligou para lá e escutei-o falando do fato de eu ser da Bardella. Conseguiu marcar a entrevista para o dia seguinte.


Um mês depois, cumprido o aviso prévio de 30 dias na Bardella, estava mudando para Taubaté. A cidade estava passando por um boom de progresso. Não conseguia arrumar uma casa para alugar, compatível com o meu salário e as nossas necessidades. Fomos nos afastando do centro e acabei saindo da cidade e chegando em Tremembé, a 7 km de Taubaté. A cidade devia ter uns 5.000 habitantes e as quadras eram muito pequenas, deviam ter uns 30 por 30 m. A primeira casa que alugamos, tinha uma barbearia no meu jardim. O proprietário fez a casa recuada e posteriormente se arrependeu do espaço perdido com esse recuo e resolveu aproveitá-lo construindo mais um cômodo que alugou para um barbeiro. A segunda, na mesma rua, era um sobrado sem garagens, que quando parava meu Ford corcel, duas portas, na frente dele, os para lamas dianteiro e traseiro invadiam os vizinhos.


A cidade era muito católica e tinha uma festa de comemoração de sua padroeira. Era uma coisa muito chique e ia gente do vale do Paraíba todo. Dois dias antes da festa as ruas eram interditadas para eles revestirem toda a pista com palhas de arroz coloridas e com desenhos de Nossa Senhora. Foi nessa ocasião que tudo aconteceu. Cheguei em casa e não pude estacionar o carro. Não entendi o que estava fazendo aquela montanha de terra em cima da calçada, esqueci de falar que ela devia ter uns 80 centímetros de largura, e ocupava meia rua, que era mais larga, devia ter uns 5 metros. Era mão única, pois dois carros não passavam por ela. Os que colocavam carro para dormir na rua tinham que defasar um do outro para não interromper o tráfego.


Cheguei perguntando a Bea o que aquela coisa estava fazendo na frente de casa e como ela deixou descarregarem aquela merda toda ali, quando a vi toda nervosa e vieram as explicações. A terra era nossa. No jardim de frente da casa, ele devia ter uns três metros de comprimento por uns 80 centímetros de largura, apareceu um buraco. Ela fez um prospecção do solo, enfiou ali um cabo de vassoura, e concluiu que era uma cratera e poderia colocar em risco a estrutura da casa. Fez uma cotação no mercado e concluiu que se comprasse de uma vez um caminhão de terra ficaria mais barato que em saquinhos, isso há três dias da festa e já com as guias das ruas todas pintadas de branco.


Já tinha recebido a visita do prefeito em pessoa, avisando que se não removêssemos aquela terra antes da chuva que estava se formando e que ia espalhar aquela merda pela cidade toda, ele enlouqueceria. Quando perguntei o quanto daquilo ela achava que entraria na cratera que ela tinha descoberto no jardim, ela me falou que aquilo já era a sobra. Dois carrinhos de mão encheram o buraco. Tive que pagar o dobro para removerem a terra ainda naquela noite. A festa foi um sucesso, já o susto, principalmente o de Bea, não foi fácil. Lembro-me dessa época com muitas saudades.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Lua de mel-parte I

Recebi meu canudo de Engenheiro Mecânico em março de 1973 e me casei em abril do mesmo ano, ou seja, um mês depois. Como tinha recebido uma boa quantia de presentes em dinheiro, do meu sogro e de Dr. Vinagre, que era padrinho de batismo de Beá, não estava muito preocupado com a parte financeira e fomos para nossa lua de mel.


Eu com 22 anos e ela com 18. Era uma época muito diferente da de hoje. Em 07 de abril às 10hs da noite, dei um beijo de despedida na minha esposa a menos de 24 horas e fui para casa dormir. A lua de mel só começava no dia seguinte e minha primeira noite de casado eu dormi com o Gerson. É mole?
Pegamos o avião no dia 8 de abril às 10 horas da manhã, um turbo hélice samurai e fomos para São Paulo. Meu primo Chico estava no aeroporto nos esperando, já com meu carro, um opala 72, duas portas, 4 cilindros, amarelo com duas faixas pretas no capô, revisado e pronto para início de nossa viagem de lua de mel. Passamos no nosso apartamento novinho em folha para verificar se os móveis tinham chegado em ordem e seguimos para Campos do Jordão, uma cidade serrana e escolhida para passarmos a primeira noite. Tinha a fama de ter uma estrada muito bonita e um clima maravilhoso, ideal para a noite de núpcias, pois não queríamos passá-la em São Paulo onde iríamos morar. O único acesso que tinha era por São José dos Campos. Alguns anos depois, meu sogro falaria uma de suas verdades engraçadas: "Cuidado quando te falam que a estrada é bonita e o clima é gostoso, pois normalmente é uma pirambeira só e um frio do cacete". Sábias palavras, não deu outra.
Chegamos no hotel Toribas e tivemos que apresentar os documentos de recém casados. Os hotéis mais finos não permitiam que casais de namorados dormissem no mesmo quarto. Foi a primeira vez que nos chamaram de senhor e senhora Marinho. Chegamos à suíte nupcial e o carregador de malas nos perguntou se queríamos beber algo. Quando perguntei a ninfa amada se queria uma champanhe ela me respondeu:
- Depois daquelas curvas da estrada, quero um sonrisal.
Pedi dois ao garçom, não ia tomar champanhe sozinho, e já fiquei preocupado com a nossa primeira noite. Mas foi tudo bem. O hotel era maravilhoso, a comida espetacular e a mulher, a minha. Estava recém formado, recém casado e com a vida toda pela frente. Programamos de conhecer o Sul do país e depois de passar três dias em Campos do Jordão para acalmar os ânimos, seguimos para Curitiba. Ficamos no hotel Ouro Verde e na entrada já houve nossa primeira divergência. Quando perguntei ao recepcionista se tinha ar condicionado e ele confirmou, Bea perguntou se tinha aquecedor. Ele ficou sem entender o que queríamos. Eu com um calor do cacete e ela com frio. Fomos para o quarto e como a viagem foi cansativa, enquanto ela tomava banho resolvi descansar um pouco. Fui acordado pelo telefone da portaria. Como já deviam ser umas 11 horas da noite, o recepcionista ligou dizendo que o quarto de baixo estava reclamando do barulho que estávamos fazendo. Dei-lhe uma puteada dizendo que ele nos acordou com aquele telefone, que já estávamos dormindo e que devia ser no quarto ao lado a bagunça. Pela minha voz de sono ele acreditou e se desculpou. Assim que desliguei o telefone, gritei para Bea, que estava tomando banho e pelo jeito a água não estava naquela temperatura de pelar porco que ela gosta, que parasse de pular no chuveiro que o cara do quarto de baixo já tinha reclamado para a portaria. Baseado em Curitiba conhecemos Vila Velha e o Porto de Paranaguá. Neste último fomos de trem e a descida e a subida da serra eram feitas com o mesmo fixado em uma corrente com freio e tração externas de tão íngreme que era o trecho. Conhecemos um casal que estava fazendo a sua segunda lua de mel, comemorando suas bodas de ouro. Ficamos companheiros de viagem e eram muito finos. Nunca vou me esquecer de um dos conselhos do velho: que o matrimonio é um cesto onde você vai colhendo rosas e colocando. Sustentados por duas alças, cada um tem que cuidar da sua e chamar a atenção do outro quando ele estiver baixando ou levantando demais. Disse ainda que não nos invejava pelo fato de estarmos começando e ele terminando, pois tudo que ele já tinha passado só deixava ele saudoso mas nunca triste e não gostaria de correr o risco de não ter esses momentos na lembrança em uma segunda chance . Muito legal os dois velhos e hoje vejo como eram verdadeiras as suas palavras.
Agora escrevendo essas lembranças, perguntei a Bea se ela se lembrava do casal e para minha surpresa ela respondeu:
- Os Veigas.
Ela que sempre teve uma memória pior que a minha, felizmente guardou o sobrenome dos dois.
De Curitiba fomos para Camboriu, e no caminho passamos por Blumenau e Joinville para fazer uma comprinhas de roupas de frio que eram muito baratas. Ficamos num hotel redondo e como era fora de temporada, éramos praticamente, os únicos hóspedes. Passeávamos a noite na praia e era uma segurança total. Não tinha bandidos, trombadinhas e outras pragas mais, abundantes nos dias de hoje. De lá seguimos para Florianópolis. Um dos lugares marcantes da viagem foi um restaurante nas margens da lagoa da Conceição. Serviam uns camarões gigantes e pescados na hora. Você os comprava vivos dos pescadores e os restaurantes preparavam na sua frente. Delicioso e muito barato. Saímos empanturrados e passando mal.
De Florianópolis fizemos uma das pernas mais longas e fomos até Porto Alegre fazendo uma única parada no caminho, em Torres, para almoçarmos. Passamos a noite na capital gaúcha e um único dia lá, pois resolvemos voltar pelo Uruguai e Argentina e conhecer as cataratas de Foz do Iguaçu. Já estávamos viajando há mais de 20 dias e percorridos 4.000 km. Seguimos para Montevidéu e fizemos em um único tiro também. Nessa viagem, uma das poucas que foi noite adentro, quase que terminamos a nossa excursão e, quem sabe, a nova vida de casados, mais cedo. Era uma estrada de pista simples e ia cruzar com um ônibus que estava piscando o farol colocando alto e baixo, me ofuscando. Achei que estava reclamando do meu farol e coloquei ele em alto e baixo também para que ele verificasse que estava com a baixa. Quando estava a uns 50 metros para cruzarmos que percebi que ele estava parado e nesse momento ele baixou as luzes e ficou só no farolete. Nesse momento eu dei luz alta e vi que ele estava parado em uma ponte e o espaço que sobrava para eu passar era igual à largura do carro e nada mais. Não dava para frear mais. Só tive tempo de fazer a pontaria e falar para Bea se segurar, pois na velocidade que íamos, qualquer triscada ou no ônibus ou no guarda corpo da ponte ia tudo pro saco. Passei quase raspando dos dois lados sem usar a tabela. Passado o perigo, perguntei a ela se tinha ficado assustada. Disse que não, que sabia que eu conseguiria. Fiquei contente de ver que tinha arrumado uma mulher corajosa para companheira. Alguns minutos depois, um desses pássaros que dormem no acostamento voou e bateu no pára-brisas, do lado dela. Ela levou um susto tão grande que as pernas tremeram por uma meia hora e de um tanto que cheguei a pensar que as rodas estavam desbalanceadas. Não era tão corajosa assim.
Fomos direto para o Hotel Flórida na plazza SAN Rafael, um dos mais bonitos do Uruguai na época. No dia seguinte, arrumamos um guia, o Juan, um velhinho, assim eu me lembro dele, mas vejo hoje que não devia ter mais do que uns 50 anos, e fomos conhecer a capital uruguaia. Foi onde dei o primeiro porre de vinho em Bea. Como o frio dela não passava, encheu a cara de vinho. Tomamos todas e fomos dormir. Ela começou a passar mal e eu, com toda minha experiência com bêbados, coloquei-a em baixo do chuveiro em uma noite que a temperatura devia estar por volta dos 10 graus. Ficou boa na hora. Adoramos Montevidéu, mas tínhamos um trecho muito grande pela frente e no dia seguinte, com Bea ainda ressaqueada, seguimos para Buenos Aires. "Bamos a los Argentinos".


quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Cagão

Quando escrevi sobre o Tio Julio, deixei de falar de uma de suas características mais marcantes. Poderíamos dizer, para não ferir suscetibilidades, que a coragem não estava na lista de suas qualidades. Era bondoso, inteligente, pai zeloso, esposo amoroso, mas era um cagão de primeira.
Lembro-me de uma vez que ele teve que embarcar no vôo de Corumbá para Campo Grande. Eu, começando a estudar engenharia, resolvi explicar para ele e Tontonio, fomos juntos embarcar o Tio Julio, os princípios que levam o avião a voar. Não podia imaginar que isso provocaria a sua reação. Não entraria nas entranhas daquele monstro mais pesado que o ar e que só voava porque tinha um motor, com uma porrada de peçinhas empurrando aquilo tudo. Ficamos eu e o Tontonio falando sobre a segurança da aviação. Falei sobre a fábrica das turbinas, a Rolls Royce, e sobre como eram produzidas as "peçinhas", com o cuidado e perfeição de todas as fases, da escolha do material até os testes de qualidades. Que tinha o melhor controle de qualidade do mundo e blá, blá, blá, blá, blá, blá... Não sei se convencido ou de saco cheio de tanta explicação, catou sua maletinha e foi para o avião. Ficamos vendo ele embarcar e o Tontonio me puteando dizendo que eu com essa mania de engenharia quase ferrei com a viagem do tio. Estava contra argumentando que se fiz a caca também a consertei, pois fui eu que o convenci, com a mesma engenharia, de embarcar, quando tudo aconteceu. Quando ele ia subir as escadinhas, parou, olhou para as turbinas, deu meia volta e retornou para o saguão.
Quando perguntamos meio em coro:
- Que porra é essa tio?
Ele vira para mim é fala:
- É pratenei
- Queeee? - Continuou o coro.
- A turbina, não é Rolls Royce. É uma tal de pratinei
Quando conseguimos entender, eu falei:
- Pratt & Whitney, tio Julio. Tão boa quanto a Rolls Royce.
Mas já era tarde e o embarque há estava encerrado e eu tive que agüentar o Tontonio. Não tinha mais argumentos com aquele cagão que devia ter embarcado, ali do meu lado.
Muitos anos depois, mais de vinte, ele já casado e com filhos crescidos, sentiu uma pontada no peito e a tia Eliney, preocupada, quis levá-lo ao médico. Depois de muita insistência, ela conseguiu convencê-lo, mas ele colocou condições. Depois fiquei sabendo que ele tinha condições para tudo. Avião, por exemplo, ele voava, mas as turbinas tinham que ser Rolls Royce, e só eu e Tontonio sabíamos o porquê. Ele vivia criando situações engraçadas perguntando para as companhias aéreas a identificação das mesmas, num país que 99% das pessoas entram num avião sem saber nem qual a companhia que o opera. Mas voltemos à visita ao médico. A condição era que a tia Eliney poderia acompanhá-lo, mas não abriria a boca na consulta. Ele quem falaria tudo. Com tudo combinado, foram para o Dr Yasbik, acho que esse era o nome do médico. Na hora da consulta ele já olhou feio para a tia na resposta ao "bom dia" do médico e resolveu se apresentar antes da consulta e a conversa, depois que o médico o examinou, foi mais ou menos assim:
- Doutor, antes do senhor falar qualquer coisa, EUUU quero lhe explicar uma coisa primeiro. Sou um cara muito tranqüilo e acho que Deus nos manda tudo na medida certa. Quero que o senhor fale a verdade, nada mais que a verdade para mim, sem nenhuma reserva, pois se tem uma coisa que todos reconhecem em mim é a minha coragem de enfrentar todas as adversidades da vida.
Falou tão bonito que o médico, sem olhar para tia Eliney que tentava fazer sinais para ele, acreditou e disse:
- Muito bem seu Julio, então vou falar sem rodeios. Acho que o senhor está com uma obstrução significativa em uma das coronárias principais. Já pedi uma cadeira de rodas e vamos internar o senhor para mais exames, e se necessário, para fazer uma ponte safena, que é coisa muito simples nos dias de hoje.
Falou isso e ficou olhando para o tio Julio. Como ele não respondia nada falou novamente:
- Entendeu seu Julio?
Como não veio resposta o médico começou a reparar que ele estava com os olhos fixos no infinito e não os piscava.
- Seu Julio, está me escutando?
Ele não ouvia nada, estava em estado de choque. Saiu da sala, foi para o cateterismo, confirmou o entupimento, e tia Eliney que teve que autorizar a sua internação. Ele continuava em estado de choque. Quando perguntavam ao médico o que poderia ser aquilo, ele só respondia:
- Resolvemos o mais urgente e depois encaminhamos para outro especialista, que isso é uma defesa do organismo.
Ele fez a cirurgia e saiu da anestesia junto com o estado de choque dele. Teve uma amnésia parcial e não se lembra de nada que ocorreu entre o diagnóstico e o retorno da anestesia.
Sempre lhe falei que ele foi o maior cagão que conheci na vida.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Hyster

Era 1970, ano do tri. Estava indo para o terceiro ano de engenharia mecânica e tinha um monte de colegas já trabalhando. Sai atrás de um estágio e papai conseguiu, com tio Pires, arrumar uma entrevista na Hyster do Brasil. É uma multinacional que fabrica equipamentos de transporte e levantamentos sobre pneus e os principais são os guindastes e as empilhadeiras. Mais devido à amizade de tio Pires com o pessoal da revendedora desses equipamentos, a Leon, do que a minha capacidade, consegui o estágio na indústria. A fábrica ficava em Santo Amaro e o traje de trabalho era o paletó e gravata. Sentia-me muito importante com esses trajes de executivo. Meu estágio foi dividido em três partes de igual período e de três meses de duração cada. O primeiro foi na área de produção onde trabalhei com um italiano muito engraçado, o Felipo Zupponi. Aprendi muito com ele, mas a maior parte do tempo era brincando e falando de mulheres. Não me esqueci que ele vivia contando seus sonhos de ganhar na loteria, contratar três loiras peitudas para fazer massagens em suas costas usando os próprios e, em seguida, ia comprar um monte de gatinhos recém nascidos, daqueles sem unhas ainda, sentar pelado em uma cadeira sem fundos, colocar suas bolas no buraco e deixar os gatinhos brincando com elas. Lembrando disso agora, tantos anos depois, chego a conclusão de que o italiano era tarado mesmo.
A segunda fase foi com o Ariovaldo Batista, na engenharia. Então trabalhei já como gente grande. Fiz meu primeiro cálculo e me lembro que era um acessório para a empilhadeira poder carregar tapetes. A empilhadeira é um trator de rodas pequenas e maciças e que em sua frente tem um elevador acionado ou por correntes ou por um cilindro hidráulico. Normalmente tem um garfo de dois dentes que entram por baixo dos palets, elevam e transportam as mercadorias que estão sobre os mesmos. Nesse caso o tapete estava enrolado formando um tubo de até 8 metros de comprimento e esses garfos não tinham como pega-lo diretamente. Fiquei uns dois dias pensando quando tive a idéia. Substituiria o garfo por um tubo de 8 metros de comprimento que entraria pelo furo do tapete enrolado e daria apoio para ele todo. Transportados até o local de armazenagem e colocado na posição final, daria ré no veiculo deixando a peça já na posição certa. Feito os cálculos e o desenho esquemático, passei para o projetista detalhar o mesmo para aprovação do Ariovaldo. Quando ele me chamou para que eu certificasse que estava feito conforme o projeto e vi aquele negócio cumprido, resolvi brincar e falei que estava parecendo meu pixito. Ele não conhecia o termo, mas pelo formato imaginou o que seria. Como achou o nome muito engraçado, resolveu batizar a peça de Pixito do Tadeu e assim ficou. Achavam o nome engraçado e a coisa foi pegando, até que pixito para eles virou aquele sistema de carregar tapetes. Eu não me agüentava quando alguém falava que o Pixito estava bonito, que tinha ficado muito ajeitada. Só eu e o Davi que sabiamos o real significado daquele nome. Acho que até hoje tem muito pixito carregando tapetes por esse Brasil.
A terceira fase foi na área de controle de qualidade com o Fred Winkler. Queria continuar na engenharia, mas não deixaram. Eu tinha que cumprir o roteiro. No começo o Fred não me deu muita atenção, pois estava envolvido com um problema que tomava todo seu tempo. Passava-me serviços que eu percebia ser para que eu não o atrapalhasse. O primeiro foi calcular o comprimento do cabo do acelerador de um guindaste. Estava com aquele monte de desenho e tendo que achar o comprimento de um negócio em três dimensões. Já estava para ficar louco quando fui acompanhar as montagem de uma dessas máquinas e comentei com o chefe da montagem, um tal de Durval, do meu problema. Ele deu risadas, pegou um arame maleável e colocou o mesmo, do acelerador até a borboleta do carburador, que acelerava o motor. Cortou o arame no tamanho certinho e depois o endireitou. Entregou-me aquilo e falou para eu passar a trena e ali estava a resposta do meu problema. Quando passei o resultado para o chefe ele ficou todo contente e me passou o problema que o preocupava. Não deu tempo, ou não tive coragem, de dizer que a idéia foi do Durval, pelo menos naquele momento. As empilhadeiras usavam um motor chevrolet 4 cilindros, 2500 cilindradas, igualzinho a do meu opala, um vermelho Saturno, 4 portas, e que se chamava Tontonio. Depois de testada e vendidas um número razoável de unidades, receberam uma reclamação que o cárter tinha estourado. Não deram muita bola, trocaram o cárter e colocaram como possível causa mal uso do equipamento. Essas empilhadeiras andam dentro dos depósitos e devia ter batido em alguma trava de porta, daquelas que ficam chumbadas no concreto do piso. Quando chegou a segunda reclamação e muito em seguida a terceira, acenderam todos os alarmes e foi junto com a minha entrada na área do controle para o estágio. A engenharia alegava que o problema não era dela, pois o motor equipava um número de carros muito superior a de empilhadeiras e a GM não tinha nenhum relato sobre cárter estourado. Estávamos pesquisando o que tinha de diferente entre a operação da empilhadeira e do opala e tudo era a favor da empilhadeira. Foi então que aconteceu a feliz coincidência. Fui dar partida cedo no meu carro e ele demorou a pegar e quando o fez deu um POW, um só no motor e ele funcionou. Na hora do almoço já tive mais dificuldades de dar a partida e resolvi levá-lo para a oficina. Era um mecânico que já tinha trabalhado na GM, numa linha de montagem e numa autorizada e agora tinha sua própria pequena oficina na Lins de Vasconcelos. Falei do problema e ele falou que era regulagem do carburador e que se eu esperasse, ele faria na hora. Tirou o filtro de ar que ficava sobre o mesmo e começou a mexer no giclet do carro. O filtro tinha um cano que ia para o cárter para permitir que o mesmo respirasse e na entrada desse caninho de mais ou menos uma polegada tinha uma telinha, na realidade eram duas telas espaçadas de uns 3 milímetros, curvas e fixadas no mesmo suporte. Como ele retirou aquilo, eu a peguei e fiquei olhando aquela peça achando por demais esquisita e falei:
- Que porra é essa Ronaldo (esse era o nome dele)?
Sua resposta foi surpreendente e para mim veio do além:
- É chamada de anel corta chama. Isso serve para quando der uma explosão que nem aconteceu no seu carburador a chama não passar por esse cano e ir para o cárter que esta cheio de vapor de óleo e é altamente inflamável. E o interessante que ele tem que ser montado com a parte côncava para o lado do cárter, se não ele explode.
Quase dei um beijo nele. No dia seguinte cedo, fui direto para a linha de montagem e encontrei com o Durval. Fomos até a empilhadeira que ele estava montando e pedi que ele abrisse o filtro do carburador. Fui direto para o respiradouro do cárter e lá estava a telinha com a parte côncava virada para o lado errado. Contei da oficina do meu carro para o Durval e ele branqueou na hora. Era o responsável por aquele erro monumental. Pediu-me que o deixasse falar com o Fred, pois senão poderia de se ferrar. Apesar da vontade que eu estava de aparecer para meu chefe, aquele era um pai de família e a menos de dois dias tinha me ajudado e sem eu pedir. Concordei que não falaria nada a ninguém e ele ficou com a culpa de ter feito a merda e os méritos de tê-la descoberto.

No final do estágio, fui agradecer aos que me ajudaram e fiquei feliz de ver que todos me convidaram para voltar como engenheiro, mas a despedida do Durval foi a mais emocionante. Ele devia ser um senhor de uns 50 anos já e quando fui a sua sala dizendo que era meu último dia, ele me abraçou e disse que quando tivesse o meu próprio negócio era para chamá-lo, pois queria trabalhar para mim. Aquele reconhecimento me deixou mais feliz que qualquer mérito que poderia ter pela solução do cárter estourado. A Hyster foi meu primeiro emprego e como a primeira namorada, tem um lugar especial em minhas recordações. Já se foram 41 anos e ainda me lembro das feições de todos eles, principalmente do Durval. Foi uma das vezes que a razão venceu a emoção, como gosta de dizer o filósofo Alaer Garcia. Mas não foi fácil.

sábado, 14 de maio de 2011

Rafael e seu amigo Joao Vitor

Estávamos na fazenda, Laura com o Zé Carlos, os filhos Rafael e Thiago na época meus únicos netos, e se mais gente já não me lembro. Thiago era de colo e Rafael com 3 anos ficava o dia todo comigo pois não tinha ninguém de sua idade para ele brincar. Ficávamos na areia da praia da casa brincando e quando tinha que fazer algum serviço ele ia comigo. Então descobrimos que na fazenda Santa Catarina tinha uma criança da sua idade, neto de seu Assis, nosso amigo e vizinho.
O programa foi fazer uma visita a ele, para o Rafael passar a tarde com o amiguinho. No começo ele não queria ir e tive que contar uma história comprida, que era um garotinho que morava no mato, não tinha televisão e nunca viu um carrinho daqueles dele, e que ficaria muito feliz de ter um companheiro da mesma idade para brincar. Com isso ele se entusiasmou e foi com todos os seus carrinhos.
Aqui temos que fazer um parêntese para falar de Rafael e o ciúme que tinha de seus carrinhos. Em São Paulo ele tinha monte e não deixava o Thiago mexer em nenhum. Em uma ocasião, eu brincando de garagem com ele, e estacionando todos em ordem, o Thiago começou a chorar que queria participar também e ele não deixava, argumentando que o irmão não sabia brincar e queria comer os carrinhos. Quando pedi a ele que desse, pelo menos um para o irmão, ele olhou todos, pegou um Fiat amarelo já sem portas e o entregou dizendo: " Ta bom, ta bom, toma Thiago, baba nesse".
Já na fazenda ele devia ter só uns três ou quatro, desses de plásticos maiores e próprios para brincar na areia. Pegou todos, colocou numa caixa e fomos para a fazenda do vizinho. No começo foi aquela sem graceira de ficar grudado na perna da gente, mas com o tempo foram se soltando e em dois tempos estavam transportando areia de um lugar para o outro. O João Vitor, esse era o nome do gurizinho de seu Assis, ficou encantado com os brinquedos e passaram a tarde toda brincando. Tinha uns dois caminhões basculantes, um de carroceria trucado, uma pá carregadeira e não lembro mais o que. O João Vitor tinha um feito de uma lata de azeite e cheio de areia que nivelava as ruas para facilitar o tráfego dos outros. Dava gosto de ver duas crianças de origens tão diferentes se entendendo tão bem. Um super urbano e outro criado na fazenda desde que nasceu.

No final do dia, quando nos preparamos para voltar para Piratininga, o Rafael deu a primeira refugada, não queria ir. Depois de prometer que voltaria um dia, ele começou a arrumar seus carrinhos. A Laura perguntou a ele se não queria dar um de seus carrinhos ao João Vitor. Ele abriu o maior sorriso e começou a escolher. Aí aconteceu o fato que tornou o motivo desta história. Ele pegou o mais bonito e mais novo de todos e estendeu ao seu novo amigo. Este ficou sem ação, pois não esperava que ele desse aquele do qual mais gostava. A mãe do menino, percebendo que era o mais novo, não quis aceitar e pediu que ele desse um outro mais velho e com o eixo dianteiro já meio torto. Aí a Laurinha interferiu e falou que se ele quem tinha escolhido era para deixar. Os dois com aquele brilho nos olhos acabaram me emocionando. Um tendo o prazer de doar e o outro de receber.
Desde aquela época eu já sabia que esse meu neto ia ser um grande sujeito e até agora ele não me decepcionou, nem uma única vez.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Relatividade

Papai gostava de falar que o tempo era inexorável, e o que você fazia estava relacionado com a velocidade com que ele passava, mas passava sempre. Meia hora podia ser uma eternidade ou um átimo (ele também gostava dessa palavra) de tempo, dependendo se você estava numa cadeira de dentista com aquele motorzinho te torturando ou comendo um bom bacalhau acompanhado com um vinho português. Era a filosofia dele e de repente extrapolava para a matemática e ai vinha dizendo que essa devia ser a tal da Teoria da Relatividade do Xará dele, o tal do Alberto Einstein.

Hoje vejo que tudo é relativo, não só o tempo. Outro dia me pegaram para assinar uma rifa para o asilo São Jose, daquelas que você escolhe um nome e ganha aquele que acertou o escondido na folha. Em uma rápida olhada vi que tinha 20 linhas e dez colunas. As chances para uma única escolha era de 1 para 200. Demais. Assinei para ajudar o asilo e porque era a Lucy que estava passando a lista, o braço direito de Mamãe, presidente da entidade, e nunca conferi. 1:200 era demais. Não passou mais de um mês e minha nora grávida foi para um exame mais detalhado, pois o ultra-som acusou que o feto poderia ter problemas e as chances eram de 1:186. Ai o bicho pegou e o 1:186 virou uma coisa quase certa. Ninguém dormia mais e quando olhava as outras estatísticas via a coisa mais preta ainda. 1:186 passou a ser a "quase certeza absoluta", como dizia o meu veterinário mor, Dr. Marcio Ribeiro da Silva. Graças a Deus deu tudo certo e os riscos foram afastados.

A possibilidade existe de acordo com os números e eles são frios, nós é que não somos. Quando fui operar minha vesícula, há algumas semanas atrás, não queria saber de estatística nenhuma, pois o risco era baixo para quem me mostrava os números e altíssimo para quem estava com o fiofó na reta... eu! Não consigo entrar em um Air Bus e não comparar os números com os do Boing. Vou sempre "cortando agulha" quando viajo no primeiro.

Mas nunca gostei de estatística como parte da matemática. Acho que é uma maneira de corrigir a nossa ignorância. Se você tivesse todos os parâmetros para análise, a resposta seria exata. A chutação dos mesmos é que justificam as probabilidades e nossa sorte é que agora, as análises estão cada vez mais detalhadas e precisas e conseqüentemente os resultados mais exatos. Antes, numa gravidez, você tinha chances de 50% de ter um filho homem e 50% mulher. Agora já estão desenvolvendo estudos e descobrindo que o sexo da criança não é aleatório, mas depende de um monte de fatores, tipo, tempo decorrido entre a ultima menstruação e o bem bom, temperatura corporal da mulher, tesão do casal e um monte de coisas mais, já descobertas e outras a descobrir ainda e na hora em que definirem todas as variáveis que interferem nisso, vai acontecer de você medir isso tudo e em vez de ir direto para cama, primeiro introduzir isso tudo no computador e só depois falar para a companheira "e ai vamos fazer uma guriazinha" é que vai começar os preparativos para a outra introdução. Só espero que não mudem o método da concepção, pois isso é bom demais, principalmente o treinamento.

Mas não sei se com toda essa técnica a vida não vai ter mais tantas surpresas e perder um pouco de seu colorido. As coisas estão indo muito rápido e vou estar aqui para ver isso. Se Deus quiser.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Minha vesícula

10 de marco de 2011.

Vão tirar minha visícula. Não tem coisa mais simples..., nos outros. Em mim vão tirar um pedaço e que está comigo há mais de sessenta anos. Já arrancaram a ponta de meu dedo e agora, minha visícula. A vida está me depenando, e me sinto como esses carros velhos que você vai tirando as peças, mas ele continua andando. Os cabelos brancos são como a pintura queimada, as rugas são como riscos na lataria. Não vou mentir... Estou com o cú na mão. O Rafael, meu neto mais velho, vai fazer 11 anos no dia 24 de março, e vou fazer a cirurgia no dia 18 para poder comparecer a sua festa, só eu, a minha visícula já não irá. Ontem à tarde ele me telefonou. Queria saber do que eu iria operar e quando eu falei, ele perguntou de lá:

- Mas onde fica essa "testícula"?

Tive que soletrar três vezes, pois não poderia correr o risco de se espalhar em sua escola, que o avô era capão. Beá esta me gozando direto. Olha para mim e quando faço sinal que estou "cortando agulha" de fiofó tão trancado de medo, ela dá risadas. É a minha visícula e não a dela que está na mira, além do que eu nunca vi mulher mais corajosa para ser operada do que a minha. Já teve cirurgia que ela marcava pensando que ia ser bom, pois aproveitaria para fazer umas comprinhas no Iguatemi. Não sei se era a coragem ou a vontade de comprar que falava mais alto. Eu já sou cagão e detesto shopping. A única motivação é o aniversario do Rafa, mas já fui aos outros 10 sem precisar tirar nada.

19 de março

Estou sem vesícula, operei ontem às 17 h. Tudo correu bem, inclusive aprendi que se escreve com "e". Sai da sala cirúrgica com o vídeo da minha laparoscopia. Parece um desenho animado de uma luta entre a bolha assassina e um super herói de mãos de aço. É impressionante como o cara aperta aquele saquinho e não estoura tudo. O super herói foi o Dr. Milton Scalabrini e o seu fiel escudeiro, o Dr Luis Carlos Ishikawa, que me colocou para dormir. O difícil está sendo o pós cirúrgico. Tudo tranqüilo inicialmente, urinei nas primeiras horas, mas o número 2 que não vai de jeito nenhum. Primeiro que não tem matéria prima. Já fiquei 12 horas em jejum para operar e mais doze de pós cirúrgico. Tem 24 horas que não entra nada, vai sair o que? A coisa só piora quando vejo que não me darão alta enquanto o intestino não funcionar. É algo como "Só você sai, o coco fica", mas a merda é que a própria quer ir comigo para casa. Não tem jeito, não sai nem com reza braba e eu estou com medo de estourar os pontos de tanto espremer a barriga. A hemorróida velha, já nem ligo pra ela, o objetivo é expulsar esse bolinho que esta se formando, mas sem nenhum sucesso até agora, a não ser a tóba que esta ficando uma flor. Vida cruel.

20 de março - 1h da madrugada.

Primeiro achei que era sonho, pois escutava o alarme de incêndio do hospital e sabia que era para evacuar o mesmo. Era perseguição comigo. Se não consigo evacuar nem meu intestino, imagine o Albert Einstein inteiro. Quando acordei por inteiro, vi que o alarme de incêndio estava gritando duro, e a minha acompanhante não acordava de jeito nenhum. Resolvi ir para o corredor ver o que estava acontecendo e encontro a acompanhante do quarto ao lado. O marido tinha feito uma cirurgia de quadril. Ficamos conversando até que ela quis saber quem eu estava acompanhando, preocupada com o caso de se precisar sair correndo. Disse que eu era o operado e a minha esposa não tinha acordado com o alarme. Para ela não achar que estava com uma acompanhante incompetente, expliquei que ela é seletiva para acordar. Ao meu menor gemido ela levanta, agora alarme de incêndio... Acho que ela não acreditou muito. Mas era alarme falso. Aproveitei que estava acordado e fui para o vaso dar mais uma espremida e... nada. Nem gases. Estou ficando nervoso, pois sinto que o troço vai virar um trôço e vai ser um parto... Pelo rabo. Quando mais você se preocupa pior fica. Voltei a dormir com a esperança de um novo dia e de conseguir expulsar tudo numa boa.

20 de março - 5:45 hs.

Isso que é o ruim desses hospitais. Acordam você no meio da noite e não te deixam dormir de madrugada. Exame de glicemia, medição de pressão e vão mexendo com você até perder o sono. Não podem esperar o cristão acordar para fazer isso tudo. Então veio a pergunta trágica:

-Evacuou?

-Não, foi alarme falso, tanto o do incêndio como da minha barriga. Nadinha de nada até agora. A impressão que tenho é que quando vir vou continuar aqui para restaurar a tóba. O enfermeiro deu risadas.

9h

O cirurgião passou às 9 h e me deu alta, mas só posso sair com a alta do clínico, o Dr. Antonio Carlos ou sua assistente, a Dra. Lindalva. Minha dúvida é se ela vai deixar eu ir embora com essa merda toda. Já vai para três dias. Tenho a impressão que o estômago está funcionando bem, pois vivo com fome, agora o problema é de intestino preguiçoso. Isso para mim é o supra sumo da preguiça, não querer fazer merda nenhuma.

21 de março - 0h

Mas a Lindalva experiente me liberou. Falou que ali eu não conseguiria fazer nada. Receitou um tal de Nujol e me mandou para casa. Descobri o porquê do nome assim que tomei a primeira dose. O negocio é um nojo. Um óleo grosso tipo SAE W 40 para motor velho. Era um lubrificante pro negócio escorregar. Duas colheres de sopa às 18h e mais duas ao deitar às 22h. Errei na dose, era uma e uma. A meia noite entrei em trabalho de parto e começaram as dilatações. Agora sei como é dar a luz. Teve uma amiga de meu filho Beto, que, ela grávida, ele brincou com ela dizendo que era fácil parir um filho. Ela respondeu que sim, que era mais ou menos como cagar um coco. Comprovei a teoria e me arrependi de não ter tomado o vidro todo do nujol. Mas passei por essa. Agora é esperar o retorno ao médico, retirar os pontos, e bola para frente. A cirurgia foi tranqüila, já o côco, não foi fácil.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Porto Sao Pedro

A grande dificuldade que os paiaguenses enfrentam é a logística de transporte. Não é fácil você escoar sua produção, mesmo que ela ande sozinha, como é o caso do gado. Estão acabando os condutores que formam as comitivas e que com seis ou sete homens, incluindo o cozinheiro, leva uma boiada de 1000 a 1200 cabeças. Eles vão por 25 a 30 dias por esse nosso pantanal, dormindo muitas vezes ao tempo. Levam os mantimentos em bruacas no lombo de burros e o cozinheiro sai junto com o gado, mas como está escoteiro, anda mais rápido e chega antes no ponto do almoço ou do pouso e prepara a bóia da turma que vem conduzindo o gado atrás. Quando a comitiva é boa, os bichos nem sentem e já aconteceu de até engordarem no caminho, mas isso está acabando. Temos que usar o rio Paraguai para transportar o gado e aí o problema é outro. Não temos portos apropriados para embarcar o gado e os boieiros são feitos nas coxas, nem água para o gado beber tem e isso com você navegando em água doce e num dos maiores rios do Brasil, o Paraguai. Com todas essas dificuldades, e ainda assim o nosso município tem o maior rebanho do Brasil, com mais de três milhões de cabeças.

Agora estão reformando o Porto São Pedro do Armando Lacerda. Participei da execução do projeto e acredito ser um grande avanço para contornar esse grave problema. Precisamos de vários portos e todos tem uma dificuldade em comum que é a diferença de nível máximo e mínimo do rio em que deve se dar o embarque. Nesse caso a dificuldade foi contornada fazendo um corte na margem do rio e fazendo uma canaleta de concreto de 1,20 de largura. O fundo da canaleta esta numa inclinação confortável para o gado descer e subir, no embarque e desembarque, e as paredes de altura variável, são mais íngremes e acompanham a inclinação do terreno. Tem uma prancha cuja cabeceira corre por cima dessas paredes e sua outra extremidade vai por dentro da canaleta e apoiada no fundo. O gado entra nessa canaleta até chegar próximo a balsa, quando sobe na prancha móvel e daí para a prancha da balsa. Existem paredes móveis feitas de canos galvanizados e madeira completando o corredor até a balsa e que vão sendo montadas à medida que o nível do rio abaixa. A construção está sendo feita por três homens de coragem: o Sergio, chefe da equipe e que parece um badboy e é um trabalhador incompatível com sua gordura, que só é tratado por gordinho, o Sebastião, que de tão bruto vive se machucando, e que acabou de cair dentro de uma caixa de gordura, e o Julio, que é o único que "guenta" as ordens do gordinho sem reclamar, muito. Estão se tornando os construtores do pantanal. Eram totalmente urbanos, mas já aprenderam a viver nesse mato, dormindo em rede, comendo carne de sol e não se importando com os mosquitos. Temos também um engenheiro experiente e que apesar de ser construtor de shoppings no Rio de Janeiro, encarou esse desafio no rio Paraguai, o dr. Carlos Larica.

O projeto foi desenvolvido de modo a mexer o mínimo com o meio ambiente e se conseguiu até diminuir a área antropizada do Porto antigo. Foi usado concreto armado ao invés de palanques em todas as colunas do mangueiro e cordoalhas ao invés de tábuas, minimizando o uso de madeira. Apesar de todas as dificuldades de transporte desses materiais, a pedra para o concreto teve que ser toda ensacada, e conseqüentemente um custo mais alto, o beneficio é compensador, tanto quanto ao tempo de duração do mangueiro quanto ao impacto ambiental, que neste caso foi, sem dúvida nenhuma, positivo. O Armando está de parabéns e espero que outros empreendedores como ele façam o mesmo melhorando nossas condições de transporte e ajudando a construção desse nosso pantanal.