sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Tek

Sempre que papai e mamãe viajavam e não podiam nos levar ficávamos na casa de Tia Dirce. Uma das vezes da qual me lembro muito bem, apesar de já ter se passado quase 50 anos, foi quando levaram o Tontonio para fazer a plástica da queimadura (" O dia que o mundo pegou fogo") e eu fiquei sozinho lá. Tia Dirce tinha um cachorro muito grande, não sei de que raça, mas era marrom com manchas pretas, orelhas caídas. Parecia um São Bernardo, mas de pelo curto. Imaginem um bicho bravo, o Tek, esse era seu nome, era muito mais, e ainda tinha um detalhe: ele não ia com a minha cara.
A mesa de refeições de todos os dias ficava em uma varanda ao lado da cozinha. A cobertura era uma parreira, e era a coisa mais gostosa do mundo, não só o lugar como a comida da Isaura, a portuguesa que veio acompanhando Vovó Emília e Tia Ana de Portugal para o Brasil. Ela fritava uns bifes fininhos, que vinham bem passados e era a maior delícia. Nunca mais comi um bife como o da Isaura. Mas voltando ao cachorrão, o Tek ficava na corrente e num quartinho que era uma antiga despensa, e a corrente era presa no batente da porta. Ele preso tinha uma área delimitada que era o quartinho de uns 2x3 e a area externa de um semicirculo cujo raio era o comprimento da corrente, que devia ter uns 3 metros. Quando me via começava a latir desesperadamente e ficava em pé com a corrente esticada. No começo eu morria de medo mas com o tempo foram me tranquilizando que a corrente era muito forte e não tinha o menor perigo dele escapar. Não deviam ter me deixado tão confiante. Observei qual que era o alcance dele e parava naquele ponto e achava o máximo o bicho ficar a centímetros do meu rosto. Acho que via aquilo como uma demonstração de coragem. O cachorro, que já não gostava de mim, adquiriu um ódio mortal. Todo o sacrifício de todos em fazer com que eu perdesse o medo do cachorro foi recompensado, já a raiva dele por mim aumentou ainda mais. Tomavam o maior cuidado de não soltar o Tek quando eu estava lá até que um dia..
A casa de tia Dirce tinha um corredor na porta de entrada, largo e comprido. Era o hall de distribuição da casa e ele ia até os fundos, onde ficava o Tek. Numa extremidade, a porta da rua e na outra a porta que dava para o páteo interno da casa, com um comprimento total de uns 10 m. Nesse corredor estavam as portas das salas de visita e jantar de um lado e a saída para a escada do sobrado de outro e várias cadeiras, daquelas de pano.
Estava voltando do cinema sozinho e com a chave da casa. A porta tinha mais de 3 metros de altura. Entrei e vi a porta dos fundos aberta. Resolvi entrar devagarinho sem fechar a porta da frente e ver onde estava o Tek, pois aquela porta dos fundos não era para estar aberta. Antes de vê-lo eu o ouvi. O barulho das unhas no mosaico e pelo ruído percebi que ele estava correndo muito duro. Quando apareceu aquele vulto no escuro eu vi que a velocidade era tanta que as orelhas estavam penteadas para trás. Ele vinha para me comer. Virei a cara pra trás e dei o maior dez metros rasos de minha vida, puxando as cadeiras para ficarem no caminho dele e ainda dei a sorte de na passada pela porta grudar no pega mão, ela tinha essas alças para fechar, e puxa-lá batendo a porta na cara do Tek. A velocidade dele era tão grande que, pode parecer mentira, mas escutei o barulho das unhas arrastando no chão querendo freiar e a batida da cara dele na porta. Escapei por muito pouco. Era para eu ter morrido comido por um cão de guarda. Joguei pedra na janela e acordei Emilinha que dormia no sobrado e no quarto da frente. Foi por um quase mas o pior ainda estava por vir.
Eu não me lembro se era de manhã cedo ou na siesta da tarde, mas foi o maior susto da minha infância. Estava dormindo quando senti um bafo quente no rosto. Abri um pouquinho os olhos e encontrei com os dele. O Tek estava solto e com a boca a um centímetro do meu nariz. Eu sentia o bafo quente dele e pensei: estou morto. Resolvi continuar de olhos fechados pois se ele ainda não tinha me mordido havia a possibilidade dele ir embora. Me lembro que eu tremia inteiro e veio aquela vontade terrível de ir no banheiro. Eu ia me cagar todo de medo pela segunda vez na vida. A primeira é para outra história. Fiquei quieto, tremendo e de fiofó trancado. Abria o olho devagarzinho e lá estava ele me olhando. Essa agonia foi até que alguém o chamou e por incrível que pareça, antes dele atender o chamado me deu uma lambida na cara, um beijo na boca daqueles bem molhados, e se foi.
Desse dia em diante eu parei de provoca-lo e ficamos amigos. Acho que desenvolvi aquele complexo de não sei o que, que acontece quando o cara fica dominado por alguém, como no caso de um sequestro, e acaba se apaixonando pelo seqüestrador. Me apaixonei pelo Tek.

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