Tio
Michel é da teoria de que o tapa mais doído é o primeiro, o dado de mão
fechada, e bem dado. Já Mamãe sempre me falou que o mais eficiente é o dado com
luva de pelica.
Hoje
vejo que os dois tinham razão, dependendo da situação.
Uns quinze anos atrás, recebi uma planta de uma fazenda vizinha com um bilhete
do proprietário propondo a venda da mesma, por um preço meio absurdo. O bilhete
era mais ou menos assim:
"Preço de venda: R$ X.XXX,00 o ha. Não vendo por menos, não adianta
insistir. Fone para contacto: xxxx-xxxx. EP."
Bem
delicado. Eu só o conhecia de nome e, assim mesmo, por causa de uma ocasião em
que seu capataz, por ordem explícita dele, não permitiu que embarcássemos um
gado em sua fazenda, que era a primeira com acesso por caminhão, no transporte
para o frigorífico. Por motivos óbvios, vou tratá-lo aqui por EP, e sua fazenda
por AAA.
Pode parecer que foi retaliação, mas não; por bagunça minha, mesmo, perdi a
planta do homem. Ele a tinha deixado na portaria com a Regina, nossa
recepcionista, que me entregou num momento em que eu estava preocupado com
outra coisa e a coloquei sobre a mesa junto com trocentos outros papéis.
Naquele dia, eu estava especialmente desorganizado. Uma semana depois, a Regina
entrou na minha sala dizendo que o senhor EP estava na recepção e queria falar
comigo. Lembrei da planta e, depois de revirar tudo, o que levou uns cinco
minutos, vi que precisava de mais tempo para uma busca profunda. Pedi que ela
falasse para ele passar mais tarde, pois no momento eu estava em uma reunião e
não podia atendê-lo. Ela me ligou em seguida, dizendo que o homem ficou meio
aborrecido e que voltaria à tarde. Baixei o escritório todo e não achei a porra
da planta. À tarde, na primeira hora, voltou a Regina na minha sala dizendo que
o homem estava lá.
– Putz, fala que eu não cheguei ainda. De repente ele desiste – falei.
– Acho que não, sr. Tadeu. Tentei aplicar o golpe dizendo que ia ver se o
senhor já tinha chegado, e ele já meio brabo disse que vai te esperar.
– Dá um tempo então, de repente ele desiste. Não marcamos hora. Fala que eu
chego depois das quatro.
Não gosto de fazer isso, mas às vezes não tem jeito. Esqueci do homem. Às
quatro em ponto, a Regina entrou na minha sala, dizendo:
– Sr. Tadeu, atende o homem. Ele já tá muito puto. Mais um pouco, ele quebra a
recepção.
Vi a gravidade da situação pelo "puto" da Regina. Ela não era de
falar palavras como essa na minha frente. No começo, não vou negar, fiquei com
um pouco de medo, e depois lembrei de Tio Michel. Se vier com violência, já dou
uma porrada na cara e pronto. Minha sala tem uma parede e porta, tudo de
blindex, que dão para uma área comum a todas as salas. Você vê a pessoa muito
antes dela te ver. Fiquei olhando para a porta da recepção para ver o que me
aguardava, quando apareceu o EP. Devia ter uns setenta anos, 1,5 metros de
altura e 50 quilos. Filet de borboleta no último. Aí que fiquei mais preocupado
ainda. O que fazer se esse cara partisse, ele, para cima de mim? Lembrei de
Dona Julieta e da luva de pelica. Ele estava com sua esposa e já entrou na
minha sala falando:
– Ou o senhor é moleque ou quer me fazer de um. Pode escolher qual das opções.
Neurastênico no ultimo, a porra do velho.
– Vamos entrar e sentar, sr. EP, e juntos vamos achar uma terceira opção. Não
sei o porque desse aborrecimento todo do senhor. Se eu tivesse uma esposa
bonita que nem a sua ia ficar contentinho o tempo todo. – Percebi que ela era
muito vaidosa, pois às duas da tarde estava vestida e maquiada como se fosse a
uma festa. A tática surtiu efeito e ela já puxou a cadeira dizendo:
– Epezinho, senta e se acalma, que você está sendo grosseiro com um gentleman.
Já passei a mão no telefone e pedi três cafés com água, já perguntando se
preferiam um suco. Se aceitassem, ia ter que mandar fazer em casa, pois lá era
só café e água mesmo. Esperei chegar o café e fui matutando o que falar para
aquela fera. Ser sincero e dizer "nem sei onde é sua fazenda pois perdi a
porra da planta"... o cara ia me bater. Quando estava nesse pensamento,
ele me falou:
– Bom, diz aí o que o senhor resolveu, que não tenho o dia todo. Chega as duas
horas que fiquei na sua recepção.
Tocou o gongo. Não tinha mais tempo para pensar.
– Bom, sr. EP, vou te dizer a verdade. O senhor pediu muito barato pelas terras
e vai acabar desvalorizando a região toda. Mandei a sua planta para um amigo em
Campo Grande, que queria comprar a minha. Não posso dizer o nome dele, mas pedi
o dobro do que o senhor me pediu e, em um primeiro momento, ele não se
assustou. Agora o senhor tem que ter calma. E tem outro interessado em
Andradina. O senhor tem outra planta?
Precisava saber se a que eu tinha perdido era a única.
Para minha sorte, ele falou:
– Lógico que tenho. Você não acha que te mandaria o original.
Se ele fosse um bom observador, teria percebido o meu "UFA!".
Passei a fazenda dele para um corretor, amigo meu de Campo Grande, e uns meses
depois ele voltou ao meu escritório, só que desta vez para me agradecer,
dizendo que tinha vendido a fazenda graças a mim. Para minha surpresa, ele se
desculpou e agradeceu novamente, e desta vez por não ter perdido a calma com
sua indelicadeza, mas que ele chegou até a pensar que eu tinha perdido a sua
primeira planta.
Só consegui responder:
– De jeito nenhum.
Mamãe também é uma sábia.