segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Luva de pelica.


Tio Michel é da teoria de que o tapa mais doído é o primeiro, o dado de mão fechada, e bem dado. Já Mamãe sempre me falou que o mais eficiente é o dado com luva de pelica.
Hoje vejo que os dois tinham razão, dependendo da situação.
Uns quinze anos atrás, recebi uma planta de uma fazenda vizinha com um bilhete do proprietário propondo a venda da mesma, por um preço meio absurdo. O bilhete era mais ou menos assim:
"Preço de venda: R$ X.XXX,00 o ha. Não vendo por menos, não adianta insistir. Fone para contacto: xxxx-xxxx. EP." 
Bem delicado. Eu só o conhecia de nome e, assim mesmo, por causa de uma ocasião em que seu capataz, por ordem explícita dele, não permitiu que embarcássemos um gado em sua fazenda, que era a primeira com acesso por caminhão, no transporte para o frigorífico. Por motivos óbvios, vou tratá-lo aqui por EP, e sua fazenda por AAA.
Pode parecer que foi retaliação, mas não; por bagunça minha, mesmo, perdi a planta do homem. Ele a tinha deixado na portaria com a Regina, nossa recepcionista, que me entregou num momento em que eu estava preocupado com outra coisa e a coloquei sobre a mesa junto com trocentos outros papéis. Naquele dia, eu estava especialmente desorganizado. Uma semana depois, a Regina entrou na minha sala dizendo que o senhor EP estava na recepção e queria falar comigo. Lembrei da planta e, depois de revirar tudo, o que levou uns cinco minutos, vi que precisava de mais tempo para uma busca profunda. Pedi que ela falasse para ele passar mais tarde, pois no momento eu estava em uma reunião e não podia atendê-lo. Ela me ligou em seguida, dizendo que o homem ficou meio aborrecido e que voltaria à tarde. Baixei o escritório todo e não achei a porra da planta. À tarde, na primeira hora, voltou a Regina na minha sala dizendo que o homem estava lá.
– Putz, fala que eu não cheguei ainda. De repente ele desiste – falei.
– Acho que não, sr. Tadeu. Tentei aplicar o golpe dizendo que ia ver se o senhor já tinha chegado, e ele já meio brabo disse que vai te esperar.
– Dá um tempo então, de repente ele desiste. Não marcamos hora. Fala que eu chego depois das quatro.
Não gosto de fazer isso, mas às vezes não tem jeito. Esqueci do homem. Às quatro em ponto, a Regina entrou na minha sala, dizendo:
– Sr. Tadeu, atende o homem. Ele já tá muito puto. Mais um pouco, ele quebra a recepção.
Vi a gravidade da situação pelo "puto" da Regina. Ela não era de falar palavras como essa na minha frente. No começo, não vou negar, fiquei com um pouco de medo, e depois lembrei de Tio Michel. Se vier com violência, já dou uma porrada na cara e pronto. Minha sala tem uma parede e porta, tudo de blindex, que dão para uma área comum a todas as salas. Você vê a pessoa muito antes dela te ver. Fiquei olhando para a porta da recepção para ver o que me aguardava, quando apareceu o EP. Devia ter uns setenta anos, 1,5 metros de altura e 50 quilos. Filet de borboleta no último. Aí que fiquei mais preocupado ainda. O que fazer se esse cara partisse, ele, para cima de mim? Lembrei de Dona Julieta e da luva de pelica. Ele estava com sua esposa e já entrou na minha sala falando:
– Ou o senhor é moleque ou quer me fazer de um. Pode escolher qual das opções.
Neurastênico no ultimo, a porra do velho.
– Vamos entrar e sentar, sr. EP, e juntos vamos achar uma terceira opção. Não sei o porque desse aborrecimento todo do senhor. Se eu tivesse uma esposa bonita que nem a sua ia ficar contentinho o tempo todo. – Percebi que ela era muito vaidosa, pois às duas da tarde estava vestida e maquiada como se fosse a uma festa. A tática surtiu efeito e ela já puxou a cadeira dizendo:
– Epezinho, senta e se acalma, que você está sendo grosseiro com um gentleman.
Já passei a mão no telefone e pedi três cafés com água, já perguntando se preferiam um suco. Se aceitassem, ia ter que mandar fazer em casa, pois lá era só café e água mesmo. Esperei chegar o café e fui matutando o que falar para aquela fera. Ser sincero e dizer "nem sei onde é sua fazenda pois perdi a porra da planta"... o cara ia me bater. Quando estava nesse pensamento, ele me falou:
– Bom, diz aí o que o senhor resolveu, que não tenho o dia todo. Chega as duas horas que fiquei na sua recepção.
Tocou o gongo. Não tinha mais tempo para pensar.
– Bom, sr. EP, vou te dizer a verdade. O senhor pediu muito barato pelas terras e vai acabar desvalorizando a região toda. Mandei a sua planta para um amigo em Campo Grande, que queria comprar a minha. Não posso dizer o nome dele, mas pedi o dobro do que o senhor me pediu e, em um primeiro momento, ele não se assustou. Agora o senhor tem que ter calma. E tem outro interessado em Andradina. O senhor tem outra planta?
Precisava saber se a que eu tinha perdido era a única.
Para minha sorte, ele falou:
– Lógico que tenho. Você não acha que te mandaria o original.
Se ele fosse um bom observador, teria percebido o meu "UFA!".
Passei a fazenda dele para um corretor, amigo meu de Campo Grande, e uns meses depois ele voltou ao meu escritório, só que desta vez para me agradecer, dizendo que tinha vendido a fazenda graças a mim. Para minha surpresa, ele se desculpou e agradeceu novamente, e desta vez por não ter perdido a calma com sua indelicadeza, mas que ele chegou até a pensar que eu tinha perdido a sua primeira planta.
Só consegui responder:
– De jeito nenhum.
Mamãe também é uma sábia.

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