Já contei no "A Origem" como faço para escrever aqui no blog usando meu celular nos momentos ociosos. Quando alguém ou algum fato me traz recordações passadas que acho interessante, registro em um lugar para escrever no futuro. Uma das que está a muito tempo nessa fila de espera e sempre me falta a coragem para escrever foram os últimos dias de meu pai. Mas como tenho que registrar tudo e essa é a história de número 100, resolvi encará-la. Sei que vai ser penoso mas são fatos muito importantes para meus filhos e netos.
Foi no dia 07 de setembro de 2006, uma quinta feira. Recebi um telefonema do Dorivaldo, motorista de papai, pedindo que eu fosse correndo na exportadora Marinho, que papai tinha caído e parecia ser coisa séria. Corri para lá e quando cheguei ele já estava deitado no sofá das visitas que havia em sua sala. Tinha quebrado a perna na altura da cabeça do fêmur. Não precisava ser médico para fazer esse diagnóstico, o seu pé ficava completamente torcido para fora fazendo uma rotação de joelho impossível. Ele mesmo falava, que não sabia como, mas tinha quebrado a perna. Passava a mão pelos cabelos, como sempre fazia quando estava nervoso, e falava que não sairia dessa, que isso não podia ter acontecido. Ele estava inconsolável e por mais que pensássemos no pior, ainda assim, não conseguiríamos imaginar o que tínhamos pela frente.
Chamamos a ambulância do corpo de bombeiros e o levamos para o hospital. Ligamos para nosso médico, Dr. Antonio Carlos Lopes de São Paulo, e ele nos mandou remove-lo com UTI aérea para lá. Não tinha o que fazer em Corumbá, a solução era cirúrgica e com 93 anos era de alto risco. No avião só podia ir um acompanhante e mamãe não dava conta. Para complicar, não chegava nenhum vôo comercial em Corumbá, todos iam só até Campo Grande. Essa trecho tinha que ser de carro e mamãe só viajava comigo dirigindo. Estava dado o nó. Conseguimos embarcar papai no mesmo dia. Era para eu ir com ele, mas na hora do embarque, meu primo Alaer, vendo o meu estado falou:
- Deixa que eu o acompanho. Sou médico e posso ser mais útil do que você. Santo Alaer. Falei com papai e como Maria Lucia estava em São Paulo, mamãe com Lenir iam no próximo vôo comercial, ele topou. Alaer embarcou com a roupa do corpo. Nunca vou me esquecer disso.
No dia seguinte, pela manhã saí com Lenir e Mamãe para Campo Grande. Embarquei as duas e voltei para Corumbá. Chegando aqui tivemos notícias animadoras. Papai estava em perfeita saúde e pronto para operar. Ia colocar uma cabeça de fêmur nova e ia ficar melhor do que antes. A cirurgia seria no dia seguinte. Estávamos apreensivos mas confiantes. A cirurgia correu as mil maravilhas. Ele passou 24 horas na UTI de praxe e como reclamava muito a falta de Mamãe, mandaram ele pro quarto. Operou no sábado, dia 10, e no dia 12 estava sentado no quarto lendo jornal. Em uma posição que ele não ficava a anos. Minha cunhada Lenir tirou uma foto dele nessa posição e nos enviou para nos acalmar. A noite liguei para ela para ter as últimas notícias e foi aí que começou nosso martírio. Pelo telefone eu conseguia escutar a respiração dele que era um ronco terrível. Ela me falou que não sabia o que tinha acontecido e ele ia para a UTI. Foi entubado e só conseguia respirar dessa maneira. Parece que ele teve um pequeno derrame e a única parte afetada foi a epiglote. Com isso não conseguiam desentubar ele.
Eu e o Tontonio pegamos o primeiro avião e fomos para São Paulo. A situação era crítica. Já tinham tentado tirar o tubo duas vezes, mas tinham que voltar. O pior é que a epiglote parou de funcionar em uma posição intermediária, nem toda fechada, nem aberta. Então qualquer líquido que ele tentava engolir ia para o pulmão. Não falava, não conseguia comer e não respirava se não estivesse entubado, e tudo isso completamente consciente.
Acabou tendo que fazer uma traqueotomia, e daquelas chatas, pois além do furo no pescoço, tinha que ter um tubinho que entrava pelo buraco e entre ele e a traquéia tinha uma câmara de ar para não deixar nada entrar pela boca para o pulmão. Tínhamos que verificar constantemente a pressão dessa boinha pois se estivesse murcha podia passar o líquido e se tivesse com muita pressão podia machucar a traquéia. Ele se alimentava por uma sonda colocada no nariz. Não tinha jeito. A perna estava bem e uma porcaria de uma valvulinha de merda estava ferrando com meu pai. Constantemente tinha que fazer aspirações no pulmão e era uma das coisas que ele menos gostava.
Depois de dois meses internados, a situação se estabilizou nessa posição. Recebeu alta do Einstein e veio para Corumbá de UTI aérea. Primeiro foi para o hospital de Corumbá para se recuperar da viagem. Como a UTI não tinha o aspirador, ele chegou aqui em um estado crítico de novo. Os médicos acharam que ele tinha pego uma pneumonia que tomou os pulmões completamente. Após a primeira limpeza verificaram que era líquido. O médico da UTI aérea bobeou mas com a variação da pressão ele não calibrou a bóia da traqueotomia e entrou líquido no pulmão.
Montamos uma enfermaria em seu quarto. Sua cama foi emprestada pelo hospital de Corumbá. Por coincidência, ou talvez devido a isso, era a mesma comprada para o meu sogro e depois doado ao hospital. O colchão era todo cheio de bolas interligadas entre si aos pares e alternados. Tinha uma bomba que inflava um lote e o outro ficava murcho. Depois de alguns minutos alternava, ou seja, os inflados murchavam e os murchos inflavam. Isso fazia com que os pontos de apoio do corpo mudassem e evitava as escaras. Três vezes por dia ia uma fisioterapeuta, a Sandrinha, muito delicada e dedicada, fazer a aspiração, mas a coisa era realmente terrível. Enfiava um caninho pelo furo da traqueotomia e através de uma bomba de vácuo fazia toda a aspiração do líquido acumulado no pulmão. Nesse momento a sensação que nos dava era de que ele estava afogando, pois junto com o líquido saía todo o ar.
Mas ele era muito valente. Quando estava bem pedia aos enfermeiros que me chamassem para passear de carro. A primeira vez que isso aconteceu levei um puta susto. Estava trabalhando, quando o Jo, um de seus enfermeiros, me pediu que desse uma passada que papai queria alguma coisa que eles não estavam entendendo. Quando cheguei, quase cai duro. O velho estava de bermuda jeans, boné combinando, papete e óculos escuros. Estava a Sandrinha e dois enfermeiros. Foi eu e ele na frente e os três atrás junto com o tubo de oxigênio. Para colocar ele no carro foi a maior dificuldade. Devia ser uma quatro horas da tarde e ficamos passeando, como nos velhos tempos. Quando perguntava se ele queria ir para casa ele balançava a cabeça que não. Passamos no Marinho, onde ele trabalhava, na casa dos irmãos, na casa onde ele tinha nascido. Fizemos um tour completo pela cidade. Voltamos já de noite e aí que percebemos que na entrada do carro tínhamos machucado ele e a camisa estava ensangüentada. Ele fez sinal de que não era nada e que era para escondermos de Mamãe. Esses passeios se repetiram muitas vezes. Bastava ele estar melhor para passearmos e era a minha prioridade. Podia estar fazendo o que fosse, o telefone da turma era para dizer que ele estava pronto, e lá íamos nós.
Com o tempo a sonda nasal começou a machucar e ele teve que se submeter a uma gastrostomia. Fizeram outro buraco, agora na barriga dele e o alimento entrava por ali. Levávamos ele de um lado para outro e ele nem perguntava o que estávamos fazendo. Não sei se por excesso de confiança na gente ou se ele estava começando a se entregar. Ele dependia dos enfermeiros para tudo. Comia pela sonda, não conseguia falar, não saia da cama, só carregado, usava fraldas direto. E quem conheceu papai imaginava o que tudo aquilo significava para ele. Lembro-me um dia em que ele me chamou em seu quarto para eu vê-lo se vestir. Tinha saído do banho e abriu a cômoda onde ficavam suas cuecas. Junto existia dois barbantes com jacarezinhos amarrados nas pontas. Ele pegou a cueca, prendeu os dois jacarés, um de cada lado, e foi soltando o barbante até a cueca chegar no chão. Entrou dentro dela e puxou o barbante subindo a cueca. Isso para não depender de ninguém para de vestir. Quando lembrava disso e via os enfermeiros limpando a sua bunda, me dava uma agonia sem igual. Mas ele era valente e nunca reclamou. Nesse sofrimento ele foi até o fim.
No seu último dia, quando deu 22:00 e fui me despedir de mamãe, ela pediu que eu ficasse com ela. Gelei. As coisas não estavam bem mas já tinha acontecido de sair chorando de casa e no dia seguinte ele amanhecer melhor. Mas Mamãe pedir para eu não ir era a primeira vez. Quando foi 5 horas da manhã do dia 15 de março de 2007 ele nos deixou. Sereno olhando para mim e para ela. Quando o médico, Dr. Luis que passou a noite toda conosco o escutou e falou que o coração estava muito fraquinho eu sabia que ele já tinha ido. Fui falar para Mamãe que precisávamos ser fortes pois ele não demorava muito. Ela me olhou e percebi que ela já sabia também que ele já tinha ido.
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