Tem certas passagens da minha vida que tenho que relatar aqui, pois envolvem pessoas que eu não quero esquecer jamais, mesmo que algumas histórias sejam bem tristes. Dr. Ubirajara Sebastião de Castro, Bira para poucos, e tive o prazer de ser um deles, foi o melhor advogado que conheci em minha vida. Além de conhecedor das leis e possuidor de um bom senso fora de série, tinha a maior das qualidades, estava sempre do lado certo. Não tinha perigo de ele fazer alguma coisa que não fosse do estrito interesse de seu cliente e dentro da lei. Todos o respeitavam, desde seus alunos da faculdade passando por seus clientes até juízes. Eu não fazia nada sem o seu aval. Qualquer coisa que fosse comprar, tinha que passar por seu crivo primeiro.
Logo que cheguei de Taubaté, tive um problema com um empregado que pediu as contas e depois entrou na junta dizendo que tinha sido demitido. Queria acordo. O Bira, sem me consultar, propôs um valor bem baixo e fez o acordo com o pilantra. Na hora não pude falar nada mas quando acabou a audiência eu disse a ele:
- Dr. Ubirajara, eu não faço acordos. Pago o que é justo. Se o senhor não estiver de acordo, me avise que vou procurar outro advogado.
Ele me olhou e falou que eu deveria ter falado isso antes pois ele estava seguindo as recomendações do Tio Patrão, mas que tinha sido o último acordo que ele propusera. Uma semana depois me presenteou com um manual resumido e esclarecido da CLT, feito por ele e falou:
- Se você não quer acordos siga esses procedimentos a risca, pois eu não quero perder questão.
Começou ali uma longa relação profissional e de amizade, onde a sinceridade sempre foi colocada em primeiro lugar. Questão trabalhista nós nunca perdemos. Com o passar dos tempos já nem havia mais empregados querendo ir para o pau. Sabiam que não havia chance de ganhar pois tudo era feito exatamente como mandava a lei e o Dr. Bira.
Ele era diabético e não dava a mínima atenção para isso. Começou a perder a visão e uma unha encravada levou a metade do seu pé. A situação de saúde dele era mais do que precária, mas não interferia em nada no seu trabalho. Fumava uns 4 maços de cigarro por dia. Entrava em minha sala e em 10 minutos parecia que estava em Londres e na época do fog. A visão já estava tão ruim que ele não acertava mais o cinzeiro. Mandei comprar um daqueles gigantes, devia ter uns 20 cm de diâmetro, era de vidro e encaixado em estojo de couro, um negocio muito chique, até o dia em que a secretaria resolveu limpar o cinzeiro com ele na sala. Quando voltou já tinha uns 5 cigarros apagados no estojo e este todo esburacado. Quando ele saía, a faxineira já sabia que tinha que entrar no banheiro e limpar tudo. Ele era super educado, levantava a tampa do vaso, ele não conseguia era acertar o mesmo. Vi que a coisa estava feia quando ele começou a urinar no bidê. Querendo ajudar acabei atrapalhando o meu amigo Bira e tenho mais esse remorso na minha vida.
Devia ser 2002, ele com uns 70 anos, fui acompanhá-lo até a porta do escritório, pois com o problema da vista mais o pé pela metade, ele cairia se não o colocassem dentro de seu carro. Quando perguntei como ele dirigia se não enxergava direito ele respondeu:
- Eu vou devagar e os outros que me vêem.
Dei risada achando que era brincadeira, e fiquei aguardando a sua saída. Tem um posto de gasolina em frente ao meu escritório, uns 50 metros para baixo. Pois bem, ele entrou no carro e saiu cruzando a frei Mariano como se não tivesse ninguém na rua. O primeiro carro acelerou e cortou a sua frente e o que vinha por trás, freou e passou lambendo a sua traseira, tudo isso sem que ele visse absolutamente nada, igual a esses desenhos animados. Liguei, na hora, pro meu irmão e contei o ocorrido. Tínhamos que dar um jeito de colocar um motorista para ele ou acabaria morrendo. Com o acordo do Zé, na primeira visita do Bira eu falei para ele:
- Bira, você é um cara inteligente e sabe que não pode mais dirigir. Ou vai morrer ou vai matar um.
- E você quer que eu saia andando com esse pé pela metade nesta merda de cidade sem calçada. Motorista, com o que meus clientes pagam, nem pensar (e falou isso olhando pra mim). Depois eu uso o carro só para vir aqui, ir a OAB, e tomar meu café da manhã no Ponto Certo.
- Então tá resolvido, Bira. Se você tem os horários certos, vou colocar o motorista da empresa para fazer esses serviços para você e o mais importante, não vai lhe custar absolutamente nada. Deixe seu carro na garagem só para emergências e fica com o telefone do motorista. Se precisar fora de hora toque pra ele. Se ele não puder te atender, ele me avisa e eu mando outro, ou vou pessoalmente. E assim ficamos combinados.
A coisa funcionou muito bem por uns 3 meses. O problema foi que o motorista não era dos mais inteligentes. Em um sábado como sempre ele foi pegar o Bira às 8:00 horas e ele não atendeu as buzinadas, nem a campainha. O idiota concluiu que alguém o levou para tomar seu café e não foi no barzinho verificar e não falou para ninguém. No domingo a cena se repete e o raciocínio do animal foi o mesmo. Na segunda feira, um advogado amigo dele, Dr Marcelo Dantas, me liga pedindo notícias dele. Pedi que aguardasse que ia ver com o motorista. Só nesse momento que a anta me falou que já tinha três dias que ele não ia tomar o café, pois a cena do sábado e do domingo havia se repetido na segunda. Com o Marcelo pedimos que os bombeiros estourassem a porta e entrassem na casa do meu amigo. Para azar nosso ele tinha tido um derrame no sábado e ficou três dias sem que ninguém o socorresse e acabou afogando em seu próprio vômito. Ainda estava vivo mas muito mal. Internamos ele na prontomed mas ele veio a falecer 15 dias depois. Perdi o advogado e um grande amigo.
Triste fim!!!
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