Devia ser fim de 1992 e estava indo ver uma fazenda para comprar. Tinha uma pampa e como já estava atrasado para o encontro com o proprietário vinha correndo um pouco. Existe um posto fiscal do estado, aqueles do ICMS, que fica na saída de Corumbá, na estrada para Campo Grande. Antigamente, quando não havia eletricidade rural, a única luz nesse local era de um lampião e por isso o lugar ficou conhecido como Lampião Aceso e nunca mais perdeu esse nome. Quando reduzi o carro para passar por esse posto, um guarda rodoviário me parou e me abordou pedindo os documentos:
- Seu guarda, estamos indo para a fazenda, não vou para Campo Grande.
- Não perguntei pra onde o senhor vai. Quero ver seus documentos.
Falei que não usava documentos para ir à fazenda pois podia perdê-los. Tentei argumentar que Corumbá era uma cidade muito pequena e que todo mundo conhecia todo mundo. O guarda falou que não me conhecia. Foi quando falei com a maior naturalidade:
- Então o senhor não é daqui. Passo neste posto todos os dias de ida e de volta. Pergunte aos fiscais do estado, ali, que eles vão te falar.
- Não sou mesmo. Sou de Campo Grande. E o senhor vai me desculpar mas vou apreender o carro. Já pensou em São Paulo se os guardas tivessem que conhecer todo mundo? Vocês tem que aprender a andar com os documentos.
- Exatamente o que estou falando. Se você fosse daqui ia pedir documentos de poucos pois conheceria todo mundo e não encheria o saco de nego que esta trabalhando.
O Esteferson, esse era o nome do corretor que estava comigo, viu que a coisa não estava caminhando bem e interferiu pedindo ao guarda que o deixasse ir até meu escritório, na cidade, e trouxesse os documentos. O guarda concordou, desde que o carro ficasse. Ia perder, no mínimo, 30 minutos mas não tinha outro jeito. Fiquei aguardando com o guardinha, enquanto o corretor, que pegou uma carona com um caminhoneiro seu amigo, foi pegar os documentos no meu escritório. Estava muito puto e resolvi encher o saco do guarda. Realmente conhecíamos todo mundo que andava naquela estrada com placa de Corumbá e como ele estava parando todo mundo e eu não tinha o que fazer, resolvi acompanhar a diligência. Nesse momento apontou o Zé Bertazzo, gerente da fazenda Ciaco, vizinha da nossa Angico. Quando o guarda foi encostando, eu já falei a ele:
- Esse é Sr. José Bertazzo. Anda até com título de eleitor no bolso e se duvidar, certidão de casamento.
O policia fingiu que não ouviu e o abordou com o mesmo:
- Bom dia. Documentos seu e do veiculo.
Pode parecer mentira mas o Zé tinha aquelas carteiras de plástico onde eles são grudados um no outro, tipo sanfona. Tirou do bolso e quando abriu a carteira, todos os documentos se desdobraram na frente do guarda e ele tirou os solicitados. O guarda olhou, agradeceu e o liberou. Ele olhou pra mim e falou:
- E aí Tadeu, tá precisando de alguma coisa?
Agradeci e ele seguiu viagem. Atrás dele veio encostando o Jam Boabaid, numa D10, ele com um chapelão de caubói é proprietário de uma fazenda na beira do asfalto e antes da minha. Falei pro guarda:
- Esse é que nem eu. Tem medo de perder, você vai ter que deixar ele de castigo junto comigo.
O guarda fez a mesma abordagem:
- Bom dia. Documentos, seu e do veiculo.
O Jam fingiu ou não ouviu mesmo e perguntou o que eu estava fazendo ali, se o carro tinha quebrado. Respondi que não e que estava aguardando o corretor que tinha ido a cidade. O guarda interrompeu nossa conversa, o que deixou o seu Jam meio brabo, e pediu novamente os documentos. O Jam, um senhor de uns 80 anos, todos vividos em Corumbá, olhou pra ele e falou, já engatando uma primeira:
- Passa no meu escritório, toma um cafezinho comigo, e depois te mostro.
Arrancou com o carro, eu me contendo para não rir da cara do guarda, e quando ele olhou para mim, não agüentei e falei:
- Não atire nele que ele revida e é dos bons de mira. Depois te dou o endereço do escritório dele. É facinho chegar lá.
Ficamos uns dois minutos sem nenhuma abordagem e, assim que passou a indignação do guardinha, começamos a falar de fazenda, o pai dele tinha uma chacrinha, quando veio o leiteiro, numa pic-up Willis 66, F75, com motor diesel adaptado no lugar do a gasolina, tudo feito nas coxas, e sem placa. Ele coletava o leite de todos os produtores da beira de estrada e entregava em Corumbá. Nem ele, muito menos o carro que era orelha de tudo, tinham documentos. Quando o guarda foi abordá-lo eu já falei:
- Você vai tirar o ganha pão desse cara. É gente boa mas não tem documento nenhum, e a família é bem grande.
Nem fui acompanhá-lo dessa vez. Fiquei sentado na pampa vendo a cena. Vi o guarda falando e o leiteiro colocar as duas mãos na cabeça. Devia estar chorando. Para minha surpresa ele foi embora com o carro e o guarda veio voltando até mim. Fui falando:
- Errei desta vez. O cara tinha documentos?
- Nenhum. Mas como poderia detê-lo depois que deixei o chapeludo ir embora?
Nisso chegou o Esteferson com o motorista da empresa e entregou os documentos para mim. Quando olhei pro guarda ele fez sinal para eu ir embora e nem quis ver os documentos. O Esteferson ficou sem entender o que eu tinha feito. No caminho é que contei a ele o ocorrido.
Hoje, mais velho, vejo que aquele era um bom guarda. Fazia o que lhe mandavam e procurava seguir a risca. Ruim eram seus chefes que o colocaram nessa fria. Do Japão ouvi falar, mas em Montevidéu eu presenciei a setorização da polícia. Os guardas, tanto de trânsito como os da civil, possuem quadras específicas sobre sua responsabilidade. Andando sozinho em Carrasco, eu era abordado constantemente pelos guardas de lá. Quando saia com o Poconé, que mora lá há 40 anos, isso já não acontecia pois todos o conheciam. Hoje Corumbá cresceu muito, mas continuo andando sem documentos, e às vezes vou até para Campo Grande sem eles. Força do hábito.
ONDE ANDA POCONÉ?
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