Terminei o primeiro científico no Arquidiocesano sem fazer uma prova. Mas tinha tido um problema, não conseguia me alimentar com aquela comida. Tinha emagrecido uns 5 kg e se no inicio era magro, no fim era pele e osso. Quando vinha a comida e aparecia uns cabelos grossos no feijão, o pessoal se consolava dizendo que era do sovaco do cozinheiro. A alternativa era pior.
No segundo ano resolveram me colocar morando com vovó. Papai comprou um apartamento na Vila Mariana, e com 5 minutos de ônibus, eu estava no colégio. No começo foi um choque de idéias. Vovó já com 70 anos e aquela criação super rígida. Eu com 15 anos e morando já há um ano longe dos pais, se virando sozinho. Como dizia aquele amigo, "não foi fácil". Eu já na faculdade e ela querendo controlar onde eu ia, com quem ia, que horas ia voltar e assim por diante. E nunca fui de mentir. Saía a noite para estudar na casa de algum amigo e quando falava isso a ela, vinha sempre a resposta:
- Sou velha, não sou boba.
Ficava quieto e ia embora. Já nos sábados a mesma pergunta era respondida:
- Vovó sou homem e tenho minhas necessidades. Vou pegar umas minas.
Aí ela respondia:
- Olha o respeito menino, você não pode falar assim com a sua avó.
Não era fácil. Mas com o passar dos tempos as coisas foram mudando. Eu realmente estudava demais e em vários sábados ela entrava no meu quarto e falava:
- Netinho, hoje é sábado, não é dia de você dar uma saída e se distrair um pouco?
Era uma velhinha espetacular. Terminou de me criar dos 15 aos 22 anos. Ficamos super amigos. Vivia escutando suas historias, de como vieram do Líbano para cá.
Meu bisavô, Nicolau Maluf, foi muito rico, mas com 40 anos, depois de muita farra, bebida, jogos e mulheres, perdeu tudo. Casou com Sussena Murad e tiveram 8 filhos. Vovó tinha 8 anos quando vieram para o Brasil onde ele iria recomeçar. Eram 8 filhos. Não sei bem a ordem mas era mais ou menos assim: Chafia, Miguel, Wadi, Salma, Isabel, Nagib, Adélia e Olinda. A tia Chafia na viagem perdeu dois dedos no guincho da âncora do navio. Embarcaram juntos com o Jorge Maluf, primo irmão de meu bisavô, Nicolau, que viria a ser avô do Paulo Maluf. Ele seguiu viagem para São Paulo enquanto os nossos desceram no primeiro porto brasileiro, que era Corumbá, para acudir a tia Chafia, que teve os dedos amputados no próprio navio e precisava de maiores cuidados médicos.
A primeira residência deles foi em Ladário. Montaram uma lojinha de armarinhos. Enquanto o pai ia para São Paulo fazer as compras, Tia Chafia e vovó tomavam conta "do lojinha". Tudo estava indo muito bem quando, num certo dia, entra um marinheiro bêbado na loja. Tia Chafia era muito bonita e um marinheiro quis abusar dela. Em Ladário, a 6 km de Corumbá, fica a base naval da Marinha. Tio Wadi, então com 10 anos, tinha uma garrucha 22 de um tiro só escondida embaixo do balcão, daquelas que você descangota, enfia uma bala e fecha. É de ação simples e para disparar tem que engatilhar. O marinheiro quando viu um garoto armado mandando ele sair, deve ter achado que a arma ou era de brinquedo ou estava descarregada, e partiu para cima dele. Tio Wadi deu um passo para trás para poder engatilhar a garrucha e nisso o marinheiro pensou que ele ia correr, e pulou sobre ele. Ele juntou a garrucha com as duas mãos, fez pontaria e mandou. Foi um tiro perfeito, pegando no meio da testa, bem entre os olhos. O cara desabou mortinho no chão. Depois disso a família toda teve que se mudar. Ficaram com medo de fazerem alguma maldade com aquela "turcaiada", e foram para Cuiabá.
Lá se meteram no Garimpo até que apareceu meu avô, Elias Nemir, que era do mesmo lugar da minha avó, o Zahle. Ele tinha 30 anos e era professor de francês e ela 14 quando se casaram. Bom essa sim podia falar: "Não é fácil"
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