quarta-feira, 26 de maio de 2010

O Castigo

Sobre Daniel e Guilherme posso dizer, como dizia aquele amigo meu, que "não foi fácil" criá-los. São os reis do apelido: dentro de casa são Dani e Gui, fora tem Faísca e Fumaça, Felpudo e Seqüela, e ainda Guilherme, que nasceu depois, gosta de chamar Daniel de Clone.
Desde os três anos lutavam o dia todo. Chegava da Mecânica Pesada para o almoço, ia tirar uma soneca para ajudar a digestão, implorava a eles que não fizessem barulho por 15 minutos e normalmente acordava antes disso com um rufando a cabeça do outro na porta do meu quarto. Não tinham jeito mesmo.
O pior aconteceu quando eles tinham por volta de 13 anos. Já morávamos em Corumbá. A brincadeira besta começou quando eles subiram no telhado de casa, junto com um primo que hoje é nosso advogado, Gustavo, e de lá atiravam grampo com um elastiquinho no pescoço de quem passava na calçada. O coitado achava que tinha sido picado por uma abelha e saía se abanando todo e os três rachavam de dar risada. O Gui resolveu mudar o jogo. Iam atirar pedrinhas no teto dos ônibus que passavam para assustar os passageiros com o barulho. Para aumentar o barulho, o tamanho das pedras foram aumentando, até que faltou força e estouraram o pára-brisa do ônibus. Paguei os prejuízos materiais mas não conseguia entender como dois meninos bem criados estavam se tornando, não digo marginais, mas moleques sem nenhuma educação. Apesar de eu nunca ter ficado de castigo, aquele acontecimento merecia uma atitude dura minha.
Tinha que castigá-los. Pensei muito e resolvi separá-los. Já era uma parte do castigo. Um ia para a fazenda Angico limpar pasto. Tinha uma invernada que estávamos destocando e um trator puxando uma carretinha juntava os paus num lugar só para queimá-los. O Gui foi para lá. Ordem pro Dorival, nosso capataz: trate-o como homem e peão, não filho do dono. Comer igual a todo mundo e mesmo horário de trabalho. O Daniel foi para exportadora carregar os caminhões. Ordem para o responsável do deposito, que era um militar que tinha acabado de dar baixa do exército: Trate-o como carregador.
Nos horários vagos, hora de almoço e depois da janta, tinha que preencher todas as linhas de um caderno brochura de 100 folhas, frente e verso, com a frase: "de hoje em diante não serei mais moleque". Não podia usar mais que uma linha nem pular. O castigo acabaria quando todas as linhas fossem preenchidas. Estávamos em dezembro e o acontecido foi no primeiro dia de férias. Lá pelo dia 18, duas semanas nessa batida, eles me avisaram que tinham acabado. Estranhei da simultaneidade. Peguei o caderno do Daniel, folheei todo e já percebi que da 2a folha em diante, de três em três linhas as letras eram iguais.
O fdp peou três lápis juntos e escrevia três linhas de cada vez. Fiquei quieto pois a regra não proibia isso. Apesar da vontade não esbocei o mais leve sorriso. Peguei o de Guilherme e na hora percebi que estava mais fino que o do Daniel. Na capa do caderno para azar deles estava escrito, e bem escrito: 100 FOLHAS.
Contei uma por uma e quando estava pela metade, já vi que o bichinho tava branco que nem uma cera. No 79 acabaram-se as folhas. Quando olhei pro Daniel ele estava pálido também. Resolvi pegar seu caderno e contar as suas folhas. Quando comecei ele não agüentou e falou pro Guilherme:
- Não disse, seu veado, que isso tudo ele ia perceber. Pode parar pai que arranquei só 10. Vou fazer esta noite.
Fiquei muito puto, mandei comprar mais dois cadernos, agora de 200 folhas, proibi escrever com 3 lápis e começaram do zero. Foram salvos pelo Jean Batiste. O Jean é filho de um grande amigo meu, o George Pion. Ele é francês e quando chegou ao Brasil nós trabalhamos juntos e nossas famílias ficaram muito amigas. O Jean que não conseguia falar Guilherme, só o chamava de "outro Daniel", era um sarro. Como eles vieram da França passar o fim de ano com a gente liberei antes o fim do castigo para não castigar o Jean por tabela, mas escreveram bem mais do que as folhas que eles arrancaram. Acho que aprenderam, pelo menos pedra em ônibus eles nunca mais atiraram.

Um comentário: