quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Chu II

Em 1984, depois de formado em engenharia Mecânica pela MAUA e civil pela UNITAU e terminar meu mestrado em estruturas no ITA, larguei tudo e vim para Corumbá. Alguns anos depois recebi a visita do Chu, meu primeiro chefe na Mecânica Pesada. Veio para pescar pois estava aposentado. Na última noite aqui fiz um jantar em casa para ele e ficamos conversando das mudanças em nossas vidas e lembrando dos tempos de Mecânica Pesada. Eram recentes, mas já eram passado, e já o tratávamos como velhos tempos. Hoje vejo o que são velhos tempos.
 Nessa conversa ele expressou a vontade de morar em uma cidade que tivesse um rio e ele pudesse pescar sempre e foi aí que tive a idéia:

- Vem para cá Chu. Trabalhamos juntos novamente. Não posso pagar muito bem em dinheiro, mas te ofereço uma casa para morar, um salário que não vai chegar nem perto da metade do que você ganhava na Mecânica, mas um rio espetacular para você pescar sempre.
Como ele tinha a aposentadoria dele, a casa era um sobradinho ajeitado, o salário era complemento da aposentadoria e o rio Paraguai era seu sonho de aposentadoria, para minha alegria e de toda minha família, ele topou.
 Trabalhamos juntos por mais de cinco anos e teve uma época em que passei a diretoria da empresa de agropecuária para ele. Era um choque de idéias muito grande, ele com os empreiteiros. Se para mim com 34 anos foi difícil a adaptação imaginem para ele com quase 60 ou talvez mais. Houveram lances inesquecíveis, como o encerramento do contrato do Clarindo, um empreiteiro de cercas. O homem reclamava que não tinha sobrado dinheiro nenhum e o Chu, penalizado com o mesmo, começou a especular onde ele tinha errado, pois o valor pago era por poste e outros empreiteiros faziam pelo mesmo preço e sempre tinham um saldo a receber no final. Durante a conversa foi descobrindo que o Clarindo fez uma série de serviços que não estavam no contrato, como limpado um piquete da sede enquanto esperava o trator ficar pronto e poder levá-lo até o acampamento e teríamos que pagar por isso. Carneou uma vaca para o capataz e salgou a carne e perdeu um dia de serviço. A medida que ele ia falando o Chu ia anotando e no final fez um aditivo com esses extras e acabou sobrando um bom dinheiro para o Clarindo. Quando foi para assinar o recibo e pegar o dinheiro que tinha sobrado por exclusiva competência do Chu, reclamou que faltava uma camisa que ele tinha rasgado fazendo o serviço e que a firma tinha que pagar. Em dinheiro de hoje, os adicionais deviam atingir uns dois mil reais e uma camisa desses caras, comprado na feirinha boliviana não devia chegar a R$ 20,00.
 O tempo gasto com o acerto do aditivo foi de uns 20 minutos, não mais, e a explicação do Chu que camisa era instrumento de trabalho e portanto por conta do empreiteiro levou uns 40. Fiquei sabendo de toda história pela Beá, que tinha sua sala ao lado da do Chu e escutou todo o acerto. Quando encontrei com o Clarindo e perguntei quando ia de volta para a fazenda ele respondeu:

- Seu Tadeu, não dá para trabalhar com esse japonês que o senhor contratou. O homem é muito pão duro. Rasguei minha camisa no serviço e ele não quis me dar outra e eu nem fazia questão que fosse nova. 
Como conhecia toda a história falei que o Chu era chinês e não japonês, que ele estava sendo injusto, que eu estava sabendo que se não fosse pelo Chu ele teria que vender as calças para pagar a firma e ficaria não só de camisas rasgadas como sem calças também, pois não estava considerando os extras e mais um monte.
Depois de tudo ele só me respondeu:

- Mas o que é uma camisa para a empresa.

Eu respondi:

- Não é a camisa Clarindo, são os princípios.

Parei a discussão e deixei ele ir embora quando ele disse:

- Só pedi a camisa, esse outro negócio é invenção dele.

Trabalhávamos muito, de sol a sol, de segunda a segunda. O Chu veio para se aposentar e descansar e acho que não conseguiu fazer mais que uma pescaria por ano. Quando comprávamos uma fazenda, ela já estava com a estrutura sucateada e tínhamos que refazer tudo, casa da sede, mangueiro, alojamento de peão e por aí afora. Quando fizemos o primeiro mangueiro, que é onde o gado é trabalhado, sentei com o Chu, especialista em turbinas hidráulicas e o Zé Mauro, que conhecia todos os mangueiros desse pantanal, com suas qualidades e defeitos e projetamos um. Com esses especialistas, quando terminamos o mesmo tinha o formato da caixa espiral de uma turbina e era otimizado para fazer o gado correr o mínimo. Todas as fazendas hoje tem um parecido e não tem quem vai conhecer e não pede uma planta. Ficou uma coisa muito chique.
Mas teve uma fazenda que compramos que estava em ordem com toda sua estrutura no mais perfeito estado. Foi a São Bento, do seu Zacarias. Acertamos um preço pelas terras e todos os bens fixos. O resto seria avaliado e o Chu o encarregado de fazer a lista dos bens que não estavam incluídos no primeiro negócio. Com a relação pronta, sentamos os três para discutir o que ficava e o que ia e os preços. O Chu com a lista na mão perguntou se o Zacarias não queria conferir de estava tudo lá ao que respondeu batendo dois dedos na testa, que sabia de tudo. O Chu começou a falar item por item e nós discutindo os preços. O que não tinha interesse para mim eu disponibilizava para ele levar. Apareceram coisas incríveis como um eixo com rodas de carro de boi, sem o resto, canga, cambão etc, que o Zacarias nem imaginava que existia e na hora ficava olhando para o nada e devia estar arrependido de ter batido com os dois dedos na cabeça. O Chu relacionou simplesmente tudo. 
Chu falava:

- Um sofá de três lugares revestidos de veludos da marca lafer.

Zacarias, olhando para mim dizia:

- R$ 500,00?

Eu respondia:

- Um novo?

Ele falava:

- Chu, põe R$ 250,00
. E seguíamos em frente.

Teve dois momentos críticos e seguidos. Quando o Chu relacionou os lustres eu reclamei que eram fixos, mas meu argumento ficou fragilizado pelo fato do Chu ser do meu lado e acabei pagando pelos mesmos. 
Em seguida o Chu falou:

- Uma imagem de São Bento de 80 cm de altura.

O Zacarias olhou para mim e deu uma risadinha e quando foi falar o preço eu não deixei e falei primeiro:

- Corumbá inteiro vai falar mal de nós seu Zacarias. Do senhor vão dizer que vendes até santo e de mim que compro até santo. Esse você ou leva ou deixa de presente.
 Ele tentou ainda aumentar o preço do sofá para contrabalançar mas não deixei. Aí já era uma questão de princípios.

Mas o Chu deixou saudades. Hoje ele mora perto de Taubaté e tem uma pousada muito legal em Gonçalves. Fez e deixou muitas coisas boa aqui e muitas saudades.

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