segunda-feira, 25 de julho de 2011

O Perito II

Chegamos de Bom Betiro e fiz um relatório completo para a diretoria, com todos os detalhes do porquê, como e quando o acidente aconteceu. A coisa toda era muito simples, mesmo para um engenheiro com só um ano de formado, como eu. O Pórtico ficava montado na crista da barragem e corria sobre trilhos. No final do mesmo, tinha um batente dimensionado para agüentar uma batida em caso do fim de curso falhar. Esse batente era dimensionado considerando a velocidade máxima de translação do pórtico e o tipo de para choques. O segundo fato era que o pórtico tinha quatro garras que o prendia aos trilhos e era acionado manualmente quando não estava em operação, como o freio de mão de um carro. Você teria que acioná-lo para evitar que em uma ventania, apesar de estar com os freios das rodas aplicados, isso era automático, ele saísse deslizando por sobre os trilhos. Na nossa visita pudemos verificar que os trilhos, ninguém sabia porque cargas d'água, estavam engraxados. Apesar do pórtico estar totalmente destruído, pudemos verificar que as garras não estavam na posição de acionadas e, por último, o acidente ocorreu no meio de um temporal. Comprovamos por fotos, que as garras tinham a pintura original de fábrica na região que iria atritar com o trilhos, ou seja, nunca tinham sido usadas. O batente agüentava porrada na velocidade de translação, mas a velocidade que o equipamento atingiu com aquele vento foi bem maior e isso podia ser comprovado, pois no cacete, arrancou os batentes do final da barragem, antes de cair dos 30 metros de altura. Feito o relatório e encaminhado para a diretoria, dei o caso por encerrado. Era o advogado de defesa do réu, o réu e o juiz. Concluí os autos com a prova de que a culpa era do cliente que operou erroneamente o pórtico e já apliquei a pena que era de pagar por outro novo. Mal sabia que a coisa não era tão simples assim e tinha muito caminho a percorrer, e com todo mundo atrás com um porrete na mão.
Assim que o relatório chegou ao cliente veio a resposta que eles estavam contratando um perito INDEPENDENTE para fazer a análise. Já estranhei uma das partes contratar um perito independente.
Cheirou bosta.
Alguns dias depois veio o comunicado para uma reunião em Porto Alegre, onde o perito iria apresentar seu relatório conclusivo e solicitando a presença do pessoal de decisão da Mecânica Pesada. 
Comunicamos ao nosso comercial sobre o que parecia uma armadilha e resolveram levar alguém de nosso departamento jurídico. Fomos, o Dr. Artur Teixeira que era o Diretor Comercial, o advogado da empresa, o chefe de departamento comercial e eu, da engenharia. Como o diretor foi o homem que me encaminhou, há alguns meses atrás para Taubaté, para a entrevista de recrutamento, senti que ele me achou muito novo e inexperiente para aquela empreitada e ficou meio contrariado. Fizemos uma reunião prévia no hotel, já em Porto Alegre, e ele vendo meus argumentos e que eu estava bem informado sobre o assunto se tranqüilizou um pouco e sendo macaco velho na área falou:

- Vamos combinar o seguinte, o Tadeu senta ao meu lado e toda questão técnica só ele quem responde. 

Virou para mim e falou, especificamente:

- Tudo que eu falar diretamente para você, segurando o seu braço, você não considera. Se eu tocar a sua perna por baixo da mesa, aí você leva a sério. Quero que fale tudo que você ache verdade, doa a quem doer. Você vai morder e eu vou assoprar. É cliente bom e não podemos perdê-los, nem por incapacidade técnica, deixando eles acharem que o pórtico caiu por nossa causa, nem cortar relações comerciais por excesso de porrada. Entendidos?

Ao mesmo tempo que me senti super importante, vi que os holofotes estavam se virando para mim, o que não me agradava nem um pouco. Estava preparado para ser coadjuvante e estavam me passando o papel de protagonista. Fui de c_ trancado. 
A entrada na sala de reunião foi apavorante. A mesa tinha lugar para umas 20 pessoas e todos eles, com exceção dos reservados para a gente, ocupados. Tinha um mega gravador no centro da mesa e um projetor de imagens. Começaram as apresentações e além do diretor superintendente da Empresa que era engenheiro mecânico e cujo nome já não me lembro mais, do perito, que lembro muito bem do nome, pois era muito bem definido, mas vou chamá-lo aqui de Dr. Perito, que fez de tudo menos definir alguma coisa e mais um convidado, o Dr. Joaquim Blessman, o maior especialista em vento da época, o restante era tudo advogado. A reunião parecia mais um júri, onde queriam demonstrar por A+B que a culpa pela queda do equipamento foi da Mecânica Pesada.
Na apresentação dos objetivos da reunião, o diretor da Empresa esclareceu que a reunião ia ser gravada para facilitar a feitura da ata. Dito isso passou a palavra para o perito. O mesmo começou dizendo que ia provar, de forma indubitável, que a culpa era da Mecânica Pesada e “não nossa”. O ato falho foi gravado e foi um mal estar geral. Após isso passou um memorial de cálculo de duas folhas. O mesmo começava calculando os esforço produzidos no pórtico pela ação de um vento que atingiu a velocidade de 150 km/h, mostrando que as DUAS garras não foram suficientes para segurar o pórtico e justificou o fato pela pequena área de contato que não poderia gerar um atrito suficiente. Tentei interrompê-lo duas vezes e o Dr. Artur, apertando a minha perna, não me deixou fazê-lo. Terminada a explicação do perito, só faltaram os aplausos dos presentes. Ele me passou o microfone e falou que, “agora você pode usá-lo que não vou te interromper”. Abri minha maleta 007 e tirei os cálculos do pórtico dela. Devia ter umas duzentas folhas e já fui atirando:

- Dr. Perito, se entendi corretamente, o senhor está afirmando que a força de atrito depende da área e como a da garra do pórtico é pequena, o pórtico caiu por causa disso. O senhor poderia me confirmar se entendi corretamente?

Ele, todo pomposo, respondeu com um “Corretamente”.

- Dr. Perito, o senhor vai me desculpar, mas apesar de só ter dois anos de formado, bem menos que o senhor, e nunca ter dado aulas em nenhuma faculdade como o senhor, foi no científico, naqueles livros de Física Básica do FTD, que aprendi que força de atrito não depende da área de contato e sim, exclusivamente, da força normal a superfície de deslizamento e do coeficiente de atrito. Gostaria que o senhor me mostrasse um livro sequer que contenha essa afirmação bárbara sua. 

No “bárbara” o Dr. Artur apertou meu braço. 
Continuei. 

- Depois Dr. Perito, para sua informação as garras do pórtico não estavam acionadas, aliás elas nunca foram usadas, e parece que o senhor na sua “brilhante” peritagem não observou isso. 

No “brilhante” novo aperto no braço do Dr. Artur. Empolguei.

- E mais um último detalhe, Dr. Perito, estou vendo agora que neste seu memorial de cálculo, o senhor considera o pórtico com DUAS garras, enquanto ele tem QUATRO. Mesmo por esses cálculos totalmente errados que o senhor fez, vai verificar que mesmo assim, o mesmo não sairia andando com esse vento anormal. Gostaria que o senhor mudasse o resultado de sua peritagem ou arrumasse um outro motivo para mostrar de forma INDUBITÁVEL, gostei desse termo Dr. Diretor, que a culpa é nossa, e nesse NOSSA, o senhor perito, independente segundo o Dr.Diretor ainda, não entra.
Agora o aperto foi na perna e entendi que os canhões deveriam estar voltados para o perito e não para o diretor.
Acabei de falar e o perito completamente contrariado e sem argumentos, pois o que ele falou estava escrito e gravado, falou do vento, e disse que ele não era ANORMAL e, já pensando que iríamos usar desse argumento, trouxe o Dr. Joaquim Blesmann para falar sobre o assunto. 
O professor assumiu a palavra e era realmente entendido de vento. Pelo diâmetro das arvores arrancadas, concluiu que a velocidade do mesmo ultrapassava os 150 km/ h. Ele entendia de vento, eu das normas que regiam a fabricação de equipamentos de transporte e levantamento e o perito de porra nenhuma. Quando ele acabou a exposição, o perito assumiu a palavra e se dirigindo para mim perguntou se eu sabia qual era a velocidade do vento no dia do acidente, para dizer que era anormal. Eu já estava totalmente emputecido com aquele charlatão e perguntei se ele sabia o que significava a palavra ANORMAL. O Dr. Artur apertou a minha perna mas não senti, e completei:

- Ou o senhor não conhece a palavra do ponto de vista técnico, o que é muito ruim para um engenheiro, ou o senhor não conhece as normas de fabricação do equipamento, o que é pior ainda para um perito. O vento de norma é de 150 km/h e o Dr. Blessman falou em valores superiores a isso. Qualquer coisa acima da NORMA é ANORMAL, Dr. Perito.
Leve aperto no braço. 
Nesse momento o Dr. Artur pediu a palavra. Quando lhe passaram o microfone, ele pediu uma pausa para o café, o desligou e falou:

- Senhores, ninguém aqui nesta sala tem dúvidas do porquê desse pórtico ter caído. Realmente o trabalho de peritagem não foi muito independente, não tem como eu não concordar com a nossa engenharia. Os senhores não tem como provar que o pórtico cairia, mesmo se estivesse com as garras acionadas, e nós fabricamos equipamentos de usinas e eclusas há muitos anos e não temos relatos iguais a esse. Agora, estamos diante de um fato que podemos usar. Tivemos sorte da norma técnica brasileira não cobrir o que aconteceu aqui, precisando ser adaptada para as condições do Rio Grande do Sul e isso pode ser feito a partir deste acontecimento. A Mecânica Pesada está disposta a fazer o mesmo pórtico pelo preço de custo e acrescentar um dispositivo de acionamento automático das garras para evitar um possível esquecimento de acioná-lo no futuro. Parou o pórtico, as garras entrariam automaticamente. 
O que vocês acham dessa solução?

O homem era um gênio. Estava dando uma saída honrosa para o cliente e ainda por cima vendendo um novo equipamento. Todos pareciam satisfeitos, quando o Dr. Perito resolveu se manifestar, dizendo que o justo era dividirmos o prejuízo, uma vez que ninguém teve culpa. Olharam para mim como se só eu pudesse chamar o homem de burro naquele momento. Falei:

- Que parte que o senhor não entendeu que se as garras estivessem aplicadas o equipamento não cairia, mesmo com esse vento anormal? Ou o senhor deseja refazer os cálculos para o resultado ser diferente do primeiro, onde a força resistente de cada garra tem que ser multiplicada por 4 e não por dois? Ou o senhor vai criar uma nova teoria, contrariando outras milenares e comprovando que força de atrito depende da área de contacto?
A medida que eu falava o Dr. Artur apertava meu braço e balançava negativamente a cabeça e até o escutei murmurando “juventude intempestiva”.

O Diretor pediu a palavra, agradeceu a presença do Prof. Joaquim Blessman e do Dr. Perito e dispensou os dois. O Blessman se despediu de mim, já o Dr.Perito nem balançou a cabeça. Não sei porque. Aí os advogados dominaram a cena e resolveram pela construção de outro equipamento, aceitando a idéia do Dr.Artur.
Não me lembro de ter passado momentos tão tensos na minha vida como aqueles. No final da reunião, o Dr. Artur nos levou ao melhor restaurante de Porto Alegre e jantamos lagosta, e o brinde, com Kir Royale, ele fez a mim.
Fiquei muito garboso.

Um comentário: