Assim que assumi a fazenda levei papai até lá. Ele com 85 anos, já usava uma bengala, daquelas australianas que pega no pulso, e como se não bastasse a dificuldade que teríamos para levá-lo, ele resolveu convidar o seu amigo Raul de Carvalho que também usava uma bengala, daquelas de lord segundo ele, que era só para dar um ar de aristocrata, porque ele não era nenhum aleijado. Falava isso sempre pra provocar papai. Depois de muito transtorno e com muita paciência, embarcamos os dois no banco traseiro do 206. Foi a primeira besteira. Deixamos eles com as respectivas bengalas. Foi a segunda besteira. Em pleno vôo os dois começaram a discutir e trocar bengaladas com papai dizendo que não deveria ter convidado aquela besta, com Raul retrucando que ele realmente era uma besta por aceitar o convite daquele quadrúpede e assim foi a viagem toda, o que chamamos de primeiro round.
Chegamos em Piratininga e demos uma volta pela sede. Raul era homem do mato muito mais do que papai que não admitia isso de jeito nenhum. Aí eu ficava ouvindo as conversas sem acreditar e era mais ou menos assim:
- Que passarinho é aquele, Alberto?
- Eu sei mas não vou te falar.
- Sabe nada português. Você não diferencia um pardal de um massa barro. Aquilo é um João Pinto e você não vê isso na cidade.
- Que fruto é aquele naquela árvore? - perguntou Raul, apontando pra um pé de cabaça. Papai resolveu arriscar:
- Jaca.
Quando Raul começou a rir veio o 2o. round. Bengala comeu solta e se não entro no meio alguém sai machucado.
- Aquilo é um pé de cabaça sua besta - falou o Raul - você pode entender de cabaço, cabaça você nunca viu uma.
Papai respondeu de pronto:
- Melhor que nunca ter visto um cabaço! - E se sentiu vitorioso, apesar de estar reclamando que uma bengalada tinha acertado seu ombro e que ia descontar.
Fomos almoçar. Como sempre a sesta era muito importante e serviu de prévia do que seria a noite. Brigaram o tempo todo pois o Raul queria ensinar papai a dormir na rede. Desisti, deixei os dois sozinhos no único quarto telado, com o único ventilador de mesa e saí para ver os trabalhos. Quando escutaram o barulho da toyota, tinha mandado uma Hilux zero bala para lá, mandaram o Zé Mauro, que é nosso piloto até hoje, avisar que queriam ir comigo, e o Zé chegou falando:
- Os velhos querem ir com você e acho bom levar. Se for deixar os dois sozinhos tem que ficar alguém com moral para apartar as brigas, não pode ser eu. Já estão se xingando lá.
Voltei e coloquei os dois na toyota cabine simples. Papai no meio. Como ele tinha um problema na cabeça do fêmur que estava soldado no acetábulo, não conseguia sentar direito. Ficava então com a perna invadindo o espaço do Raul e com o corpo querendo vir para cima de mim. Para se equilibrar ele ia com a mão direita na alça que ficava sobre a porta e assim invadia também por cima o espaço do Raul, e ainda tampava a visão dele. Não tinha outro jeito. O Raul sugeriu:
- Vamos trocar de lugar. Eu vou no meio.
- E ponho minha perna dura aonde. Vou de porta aberta?
- Mas você ta incomodando e não vejo nada com seu braço na frente!
- Então fica. O sabichão já viu tudo, conhece tudo, tá indo só pra encher o saco?
Estava começando mais um round que terminou com outra vitória do Raul. Quando apareceu um veado campeiro e ele não conseguiu ver, trancou os dentes no braço de papai!
Estava ficando impossível administrar aqueles dois, essa seria a viagem mais longa até Piratininga, apesar de estar marcado para retornar na primeira hora do dia seguinte. Mas ainda tinha a noite toda... Estava um calor infernal e só tinha um ventilador na casa. Armei as redes no quarto para os dois. O ventilador era um GE de 1960 com umas 10 polegadas de diâmetro ligado no máximo. Era bom, silencioso mas não tinha o mecanismo de virar para os lados. Só ficava em uma posição. Começou a mais longa de minhas noites. O pau quebrou e não tinha acerto, até que tive a ideia de desligar o motor e falar que não tinha mais ventilador. Antes o calor do que aquele quebra pau de dois velhos que tinham o maior prazer de azucrinar a vida um do outro.
No dia seguinte, tomamos o avião bem cedo, horário que joga menos, separamos os velhos, papai foi no banco de trás e Raul no do meio e fizemos uma viagem tranquila. Quando fomos deixar o Raul em casa papai disse:
- E aí, gostou? Vamos de novo?
Raul respondeu
- É só me convidar que estou sempre pronto.
Eu só pensei: Comigo? Nunca mais!
Bons tempos. Hoje sem Alberto, sem Raul e sem João Vitor, Piratininga ficou mais sem graça.
Essa história me foi inspiradora! Já sei como me vingar dos meus filhos aloitando o dia inteiro! Qdo Dani e Gui estiverem com 85 anos vou mandar Rafael e Thiago levarem eles numa viagem! A vingança será maligna!
ResponderExcluirQue saudades de Vovô Alberto...
ResponderExcluirAdorei,recordar é viver
ResponderExcluirAna Cristina
Hj eu aqui na Piratininga lendo isso!!! Como ela esta linda!!! Tenho que te trazer mais aqui pai!!!
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