Tem coisas que você faz e depois de alguns anos não consegue entender o que o levou a fazer aquilo ou, pelo menos, como conseguiram te convencer a fazer determinada coisa.
O meu irmão Zé António estava de visita em São Paulo. Devia ser por volta de 1976. Já tínhamos Laura e Beto e ele Mercedes. Ele estava em uma época de muito medo, verdadeiro pavor de qualquer meio de transporte. Para chegar em São Paulo já tinha sido um parto. Morávamos em Taubaté e ele tinha ido a São Paulo para o casamento de Genarinho, um primo nosso. Esse casamento foi inesquecível e um dia vou escrever sobre ele.
Mas, voltando a nossa viagem, o meu cunhado Pedro Henrique, irmão de Beá, iria ficar noivo no Rio, nos convidou, e eu queria levar o Zé. Veio a condição: eu topo se formos de trem. Tentei convencê-lo mas não tinha jeito: avião não servia porque voar era feito para passarinhos, ônibus no Brasil com motoristas dirigindo 20 horas seguidas, não sei de onde ele tirou esses dados, era suicídio. Conclusão? Pegamos uma litorina em São Paulo às 7 da manhã de uma sexta feira e fomos, com três crianças sendo uma de colo, por 10 horas para o Rio de Janeiro. A viagem de ida foi muito boa pois viemos despreocupados com o motorista sair da estrada, bater em outro trem na contramão e outras vantagens que ele veio enumerando de São Paulo até o Rio. O pesadelo foi a volta.
Passamos o fim de semana no Rio, o noivado foi no sábado a noite, e eu tinha que estar em Taubaté na segunda. As mulheres, cansadas ainda da viagem, resolveram passar a semana no Rio e voltaríamos no outro fim de semana para buscá-las. O Zé resolveu voltar comigo pois tinha negócios a tratar em São Paulo. Quando ele falou isso eu já imaginei 10 horas de trem, sentado a noite toda. Ele me tranquilizou dizendo que já tinha providenciado tudo. Tinha um trem noturno que saía às 7 da noite e passava por Taubaté às 3 da manhã. Íamos dormindo tranquilamente sem se preocupar com veiculo na contra mão, etc e tal. O Cauto, cunhado de Beá, aderiu a ideia. Ia deixar Mena com as crianças por uma semana no Rio e ia voltar com a gente. Ele morava em São José dos campos, 40 km para frente de Taubaté. Ficamos todos animados em viajar de noite de trem e o primeiro problema apareceu antes de embarcar. Só tinha uma cabine. Cauto, já sem opção, resolveu embarcar clandestino. Subornamos o camareiro, que arrumou um colchão extra para colocarmos no chão da cabine. Foi o Zé na cama de baixo, eu na de cima e Cauto no colchão extra. O segundo problema apareceu quando perguntamos a que horas o trem chegava em Taubaté. Não chegava, respondeu o cabineiro, passava e correndo! Oh meu, e agora? O Cauto perguntou:
- Em São José ele para né? O cara respondeu:
- Parar, assim bem parado não, mas dá uma meia trava e vocês conseguem pular.
Quando perguntamos pro Zé que porra era essa, ele começou a dizer que isso era um absurdo, por isso que aquela merda de ferrovia ia quebrar, e acabamos embarcando mesmo assim. Desceríamos em São José e Cauto me levaria de carro, de volta pra Taubaté, que estava a 40km.
Só tiramos o sapato para dormir, para poder descer rápido do trem andando, e o Zé ficou 10 minutos falando com o cabineiro que precisávamos descer em São José, que ele tinha sono pesado, pro cara bater duro na hora que tivéssemos que descer do trem andando. Fomos dormir e acordei com o Zé me chacoalhando e na descida já pisei no Cauto. Naquela escuridão não se achava nada e quando assustamos já estávamos fora do trem, com o Zé jogando as nossas maletas pela janela. Achei muito escura a estação de São José dos Campos e a primeira impressão foi que, na pressa, descemos do lado errado do trem. Ficamos parados esperando o trem passar para ir para a plataforma. Só percebemos que o trem tinha passado porque parou de fazer barulho. Do outro lado não tinha nada. Ficamos, eu e o Cauto, sem entender o que estava acontecendo até a vista se acostumar com o escuro e percebermos que tinha um homem sentado numa cadeira à nossa frente, que quase enfartou quando nos viu e disse:
- Tenho 20 anos aqui e é a primeira vez que vejo passageiro descer aqui. Normalmente o trem só para para entregar o malote. Cauto perguntou:
- Mas que porra é essa? Aqui não é São José dos Campos?
O carinha respondeu:
- Próxima estação.
Aí caiu ficha, o camareiro com tanta recomendação do Zé resolveu avisar uma estação antes para dar tempo de nos prepararmos para o salto, o Zé no desespero, literalmente nos jogou do trem que estava parando para entregar o malote. Aí escutei já o cara respondendo meio na gozação:
- É fácil, só seguir o trilho e andar 10 km. Eu não tinha escutado a pergunta do Cauto, só a resposta do carinha e a replica do Cauto:
- Zé filho da puta!
E começamos a andar. No caminho começamos a pensar no que aconteceria com o Zé, o que fiquei sabendo horas depois pelo próprio. Ele contou que depois que descemos que ele relaxou já que ia poder dormir até São Paulo. Até o momento ele não tinha pregado os olhos com medo do trem passar direto e ele ser o culpado de não chegarmos na hora no trabalho. Ele se sentia responsável, pois a viagem de trem tinha sido ideia dele, tanto a ida como a volta. Antes de dormir resolveu fumar um cigarro sentado na cadeira que ficava na janela da cabine. Estava terminando o cigarro quando o camareiro bateu na cabine, com o trem diminuindo a velocidade. Antes de atender a porta, ele viu aquela puta estação toda iluminada com mais de 100m de plataforma e escrito em uma placa luminosa "São José dos Campos". Quase enfartou! Correu, abriu a porta já perguntando pro camareiro:
- Onde que você desceu os homens? O camareiro respondeu mais assustado do que ele:
- Hein?!?! Como assim. Eu bati para avisar que era a próxima parada.
Bom o Zé passou o resto da viagem sem dormir.
Já nós, andamos até o sol nascer, tropicando nos dormente e xingando Dona Julieta, minha senhora mãe e também do Zé, de tudo quanto era nome. Quando clareou vimos a caixa d'água de Vista Verde, que era um bairro que a empresa que o Cauto trabalhava estava construindo. Quando falei que já estávamos perto ele respondeu:
- Ilusão de ótica. Aquela caixa é grande pra cacete e daqui tá parecendo pequenininha. Vamos cortar caminho. Descemos essa pirambeira, cortamos esse campo gramado e com sorte, em meia hora chegamos na Dutra.
Nisso vi a Dutra, uma estrada de duas mãos com duas pistas de cada lado parecendo uma estradinha. Aí vi que estávamos muito longe. Fomos cortar o gramado e no meio do caminho descobrimos que era um brejo, o maior que já vi na vida, mas não tinha retorno. Tinha pontos em que a água chegava nos joelhos. Depois de duas horas atingimos a Dutra e por sorte, por incrível que pareça, na hora estava passando um ônibus para Taubaté que parou para eu embarcar. Cauto ainda tinha uma hora de caminhada pela frente e resolvi largar dele.
Cheguei às 11 da manhã na Mecânica Pesada do jeito que estava. Fui direto para sala do meu chefe pensando: ele vai acreditar nessa história vendo o estado das minhas roupas. Quando entrei na sala dele vi sua alegria e alívio quando me viu e já foi dizendo:
- Liga logo pro seu irmão que ele já ligou umas 10 vezes para cá. Já estamos sabendo da besteira que você e seu cunhado fizeram descendo na estação errada. Quando ele acordou em São José percebeu o que tinha acontecido e desde que chegou em São Paulo não faz outra coisa que não ligar para cá de dez em dez minutos. Estava todo mundo preocupado com vocês.
Não falei nada e fui ligar pro filho da puta do meu irmão.