quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Cagão

Quando escrevi sobre o Tio Julio, deixei de falar de uma de suas características mais marcantes. Poderíamos dizer, para não ferir suscetibilidades, que a coragem não estava na lista de suas qualidades. Era bondoso, inteligente, pai zeloso, esposo amoroso, mas era um cagão de primeira.
Lembro-me de uma vez que ele teve que embarcar no vôo de Corumbá para Campo Grande. Eu, começando a estudar engenharia, resolvi explicar para ele e Tontonio, fomos juntos embarcar o Tio Julio, os princípios que levam o avião a voar. Não podia imaginar que isso provocaria a sua reação. Não entraria nas entranhas daquele monstro mais pesado que o ar e que só voava porque tinha um motor, com uma porrada de peçinhas empurrando aquilo tudo. Ficamos eu e o Tontonio falando sobre a segurança da aviação. Falei sobre a fábrica das turbinas, a Rolls Royce, e sobre como eram produzidas as "peçinhas", com o cuidado e perfeição de todas as fases, da escolha do material até os testes de qualidades. Que tinha o melhor controle de qualidade do mundo e blá, blá, blá, blá, blá, blá... Não sei se convencido ou de saco cheio de tanta explicação, catou sua maletinha e foi para o avião. Ficamos vendo ele embarcar e o Tontonio me puteando dizendo que eu com essa mania de engenharia quase ferrei com a viagem do tio. Estava contra argumentando que se fiz a caca também a consertei, pois fui eu que o convenci, com a mesma engenharia, de embarcar, quando tudo aconteceu. Quando ele ia subir as escadinhas, parou, olhou para as turbinas, deu meia volta e retornou para o saguão.
Quando perguntamos meio em coro:
- Que porra é essa tio?
Ele vira para mim é fala:
- É pratenei
- Queeee? - Continuou o coro.
- A turbina, não é Rolls Royce. É uma tal de pratinei
Quando conseguimos entender, eu falei:
- Pratt & Whitney, tio Julio. Tão boa quanto a Rolls Royce.
Mas já era tarde e o embarque há estava encerrado e eu tive que agüentar o Tontonio. Não tinha mais argumentos com aquele cagão que devia ter embarcado, ali do meu lado.
Muitos anos depois, mais de vinte, ele já casado e com filhos crescidos, sentiu uma pontada no peito e a tia Eliney, preocupada, quis levá-lo ao médico. Depois de muita insistência, ela conseguiu convencê-lo, mas ele colocou condições. Depois fiquei sabendo que ele tinha condições para tudo. Avião, por exemplo, ele voava, mas as turbinas tinham que ser Rolls Royce, e só eu e Tontonio sabíamos o porquê. Ele vivia criando situações engraçadas perguntando para as companhias aéreas a identificação das mesmas, num país que 99% das pessoas entram num avião sem saber nem qual a companhia que o opera. Mas voltemos à visita ao médico. A condição era que a tia Eliney poderia acompanhá-lo, mas não abriria a boca na consulta. Ele quem falaria tudo. Com tudo combinado, foram para o Dr Yasbik, acho que esse era o nome do médico. Na hora da consulta ele já olhou feio para a tia na resposta ao "bom dia" do médico e resolveu se apresentar antes da consulta e a conversa, depois que o médico o examinou, foi mais ou menos assim:
- Doutor, antes do senhor falar qualquer coisa, EUUU quero lhe explicar uma coisa primeiro. Sou um cara muito tranqüilo e acho que Deus nos manda tudo na medida certa. Quero que o senhor fale a verdade, nada mais que a verdade para mim, sem nenhuma reserva, pois se tem uma coisa que todos reconhecem em mim é a minha coragem de enfrentar todas as adversidades da vida.
Falou tão bonito que o médico, sem olhar para tia Eliney que tentava fazer sinais para ele, acreditou e disse:
- Muito bem seu Julio, então vou falar sem rodeios. Acho que o senhor está com uma obstrução significativa em uma das coronárias principais. Já pedi uma cadeira de rodas e vamos internar o senhor para mais exames, e se necessário, para fazer uma ponte safena, que é coisa muito simples nos dias de hoje.
Falou isso e ficou olhando para o tio Julio. Como ele não respondia nada falou novamente:
- Entendeu seu Julio?
Como não veio resposta o médico começou a reparar que ele estava com os olhos fixos no infinito e não os piscava.
- Seu Julio, está me escutando?
Ele não ouvia nada, estava em estado de choque. Saiu da sala, foi para o cateterismo, confirmou o entupimento, e tia Eliney que teve que autorizar a sua internação. Ele continuava em estado de choque. Quando perguntavam ao médico o que poderia ser aquilo, ele só respondia:
- Resolvemos o mais urgente e depois encaminhamos para outro especialista, que isso é uma defesa do organismo.
Ele fez a cirurgia e saiu da anestesia junto com o estado de choque dele. Teve uma amnésia parcial e não se lembra de nada que ocorreu entre o diagnóstico e o retorno da anestesia.
Sempre lhe falei que ele foi o maior cagão que conheci na vida.

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