Era sábado e estávamos em casa almoçando, como de praxe, com os filhos e netos. Era um cozido e estava delicioso. A sobremesa era salada de frutas com creme de leite, e na hora de servi-la que o telefone tocou. Minha nora Paty quem atendeu, atendeu mas não entendeu, e foi o inicio de toda confusão. Passou o fone para Bea que, assim que o colocou no ouvido, levantou da mesa e começou a ficar branca e só falava:
- Calma que não estou entendendo nada.
Na terceira fez que repetiu essa frase, completou.
-Mena, fica calma, estou indo ai.
Foi quando pulamos da mesa, eu e os três filhos.... sem comer a sobremesa e em três carros.
No caminho ela foi me contando o pouco que tinha entendido. O Cauto, seu cunhado marido da Mena, voltando de Santa Gertrudes, tinha caído com o avião. Depois do susto inicial, a um mês atrás tínhamos perdido um amigo em acidente com esses pequenos aviões, começamos tentar a entender o acontecido e só sabíamos que ele se comunicou por rádio com algum avião que estava por perto avisando que estava em pane e faria um pouso de emergência, e depois disso não fez mais contato. Chegamos à casa de Mena e parecia filme de terror, ela não parava de chorar, falava entrecortado de soluços, dizendo que ele caiu na Caieira e estava com o filho Gabriel. Marido e filho, único homem, num acidente de avião. É dose alta para qualquer um.
Conseguimos acalmá-la um pouco dizendo que até agora, o que sabíamos era que ele fizera um pouso de emergência e não que caíra. Era uma situação bem diferente e ele era um piloto experiente. Expliquei ainda que Caieira, que naquele momento já tinha virado uma montanha para ela, era uma merda de um morrinho, muito baixo e único nessa rota e não tinha como ele trombar nele, ainda mais avisando um colega antes. Água com açúcar para todos e vamos acalmar para ver o que fazer. Nisso chega Emílio com a esposa, primo dela, que foi quem recebeu a notícia do piloto. Dividimos a turma, ele iria para o Dac conseguir mais informações, as vezes ele consegue falar por radio do solo, eu falaria com o almirante para conseguir o helicóptero da marinha para uma busca e possível resgate. Como isso era mais demorado, tinha todo um procedimento a cumprir, eu mandaria o Zé Mauro fazer um sobrevôo na Caieira, na rota Corumbá - Santa Gertrudes para tentar achar o BGZ.
Na saída da casa de Mena, sem ela perto, o Emílio me deu o resto da notícia que me preocupou bastante. O ELT do avião tinha sido acionado e seu sinal recebido em Curitiba. A coisa era mais grave. O ELT é um aparelhinho que começa a emitir sinal de socorro após um impacto mais forte na aeronave. Se ele tinha pousado, não foi dos pousos mais bonitos, pensamos. Conseguimos interromper o domingo tranqüilo do almirante e fomos muito bem recebidos. No instante em que ele ligava para a base para providenciar o deslocamento do helicóptero da marinha, recebi um telefonema de Bea. Cauto estava vivo e tinha chamado Mena por telefone e passado as coordenadas onde ele estava e, além disso, só conseguiu falar que acesso era só por barco, que nem helicóptero chegava lá. Não tinha onde pousar. Passamos as coordenadas para o Almirante com a informação do acesso e fomos para meu escritorio consultar o Google Earth e ver onde estava o avião. Plotamos as coordenadas e vimos que estava a 4 km da Caieira e no meio de um brejo cortado por pequenas vazantes. Nenhum lugar seco para pousar um helicóptero. Avisamos o almirante do problema e ele se prontificou de ver um helicóptero da Aeronáutica, desses com guincho e puçá para resgate sem necessidade de pouso. Imaginei Cauto pendurado numa corda e içado para um helicóptero no ar após ter caído com um avião. Não ia ser fácil e ele ia se cagar todo.
Quando íamos para o aeroporto para despachar o Zé Mauro para fazer o primeiro contato visual com o Cauto, Mena teve a idéia de fazer uma mala com alguns artigos de primeiros socorros para eu jogar a ele. Quando fui pegar a mala que vi como ela ainda estava nervosa. A bicha era maior do que a minha quando vou passar 15 dias fora de casa. Para atirar aquilo do ar, só tirando a porta do avião e se por acaso atingisse o Cauto, o sobrevivente da queda não sobreviveria a malada. Tirei o garrafão de água de 5 litros e deixei uma garrafinha de 500ml, deixei uma única maça do lote de 4, um pacote de bolachinha das que eu mais gostava das 18 que estava dentro, e o cobertor. O resto ficou, inclusive uma laterna megalite de 3 kg. Trocamos a mala por uma sacola impermeável e de um tamanho que passasse pela janela basculante do avião. Dividimos a turma. Fui com Guilherme encontrar o Ze Mauro e Beto e Daniel foram para o corpo de bombeiros tentar algo por lá. O Zé Mauro que já estava com o OVX no jeito, quando viu a mala, fez nós irmos juntos.
Uns minutos antes de decolarmos o Almirante nos ligou avisando que estava na hora limite do helicóptero de busca e salvamento sair de Campo Grande e chegar de dia ainda para o resgate. Concordamos que de puçá, ia dar certo e decolamos juntos, nós a 10 minutos do Cauto e a Busca e Salvamento de Campo Grande, a duas horas de vôo. Apesar de termos as coordenadas exata e dois GPS, o do avião e um portátil de mão, demos umas 5 voltas para avistarmos o avião. No banco de trás e tendo acesso as janelas dos dois lados, na quinta passada consegui avistar a ponta da asa do BGZ, sobressaindo do meio de um cambarazeiro. O homem tinha feito um pouso de tuiuiú. O avião estava com uma asa em cima da arvore e a outra tocando a água. Sobre o avião, dando tchau para nós, o comandante Cauto. Estava inteiro e agora só faltava lançar a mala da Mena. Zé Mauro fez o procedimento padrão de afastamento, curva de 360•, e reduzido e flapeado fez um razante sobre o Cauto.
Pela janela da esquerda, eu atrás do piloto, esperei o momento certo, calculei a velocidade do vento, o arrasto que a mala ia ter no ar, velocidade do avião, e fiz o lançamento. A mala descreveu uma parábola invertida e foi caindo, caindo, caindo e eu seguindo aquela mala vermelha com os olhos e me contorcendo todo, como se fosse conseguir mudar a trajetória da bicha. Caiu longe pra cacete. O Zé Mauro ainda comentou que ele tiraria a roupa e peladão pegaria a maleta. O que não sabíamos é que o Cauto já tinha achado água e bolacha do kit de sobrevivência do Zé Mauro. Resolvemos pousar na fazenda Caieiras a 4 km do acidente. De lá poderíamos falar com Corumbá e dar notícias que fizemos contacto visual com Cauto, tranqüilizando o povo. Telefone celular dentro desses pequenos aviões é impossível de se conversar. Você fala, mas não sabe se a pessoa escutou. Chegamos juntos com o primeiro barco do corpo de bombeiros. Tinham a idéia de ir a cavalo e de a pé até o Cauto. Era muita coragem, mas não tinha como fazer isso. Eram 4 km de água e como disse Ze Mauro, vocês podem até chegar lá, mas não vai ter lugar para dormir todos no avião, e agora a noite ninguém vai convencer Cauto de cair nessa água gelada com esse puta frio. Eles responderam: vamos torcer então para o outro barco ter mais sorte.
Foi aí que soubemos que o Daniel, meu filho, com meu primo Gelson tinham saído com outro barco de Corumbá com a idéia de subir o rio Pacú, que pelo mapa satélite parecia chegar mais perto e conseguir resgatar o homem, ou ao menos a mala, pois achava que ela tinha caído no meio de um corixo. A coisa estava meio descoordenada, mas tínhamos uma alternativa para o helicóptero. Os bombeiros quiseram fazer um sobrevôo para ver como estava a chegada desse rio no avião. Ficamos aguardando o Zé Mauro fazer isso com eles, que saiu meio contrariado falando que estávamos procurando jeito de trombar com o helicóptero que já devia estar chegando. Como não tínhamos a confirmação disso e não queria ligar novamente para o Almirante, já tinha perturbado ele por demais, fizemos o segundo sobrevôo. Assim que ele pousou já não tínhamos tempo de mais nada. Faltavam 20 minutos para o por do Sul e tínhamos que ir para casa e aguardar as notícias. Elas chegaram pelo radio do avião e antes de pousarmos em Corumbá, escutamos:
- Controle Corumbá, é o busca Aereo.
- Prossiga - respondeu o controle Corumbá.
- Busca Aereo informa que a operação de resgate foi um sucesso. Estamos com o sobrevivente a bordo e passando muito bem. Cumprindo normas favor providenciar ambulância para recebê-lo.
A aventura do Cauto tinha acabado, e graças a Deus, da melhor forma possível.
Aconselharam-me a fazer uma entrevista com ele e escrever a mesma história vista pelo angulo do piloto. Vou pensar, talvez valha a pena pelo milagre do telefone. É que o homem é duro de falar e vai ser mais difícil tirar essa história dele do que o próprio resgate.