quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Quem aguenta?

Devia ser por volta de 1985. Lembro com certeza do ano, pois eu já estava morando em Corumbá e trabalhava no Marinho, na sala que ficava no escritório do mercado interno, no mesmo prédio de tio Patrão e Ivan. Papai com Tontonio ficavam na exportadora que é na mesma quadra mas na outra extremidade. Todos os dias, nos horários mais tranqüilos, íamos no café São Paulo tomar um cafezinho, antecedido por um copo d'água gelado. Costume da região que é muito quente: uma combinação perfeita para matar a sede. Numa dessas idas minhas para convidar os dois para o cafezinho, não encontrando papai em sua sala, fui procurá-lo pelos depósitos. Ele que separava toda a mercadoria para o despacho. Era o gerente de vendas, vendedor, faturista, chefe de depósito, chefe de almoxarifado e não entregava as chaves de nada disso para ninguém. Andava parecendo São Pedro, com tudo pendurado no cinto. No depósito dos fundos, encontrei ele com o Dorival e mais um cliente, pintando umas lonas. Ele mandava dois carregadores colocarem a lona dobrada no chão, vinha com umas letras daquelas feitas em chapa fina e vazada, montava o nome e com um pincel, pintava o nome da marca no canto da lona. No começo dei até idéia de usar tinta spray para não borrar os cantos, logo aperfeiçoado por ele, para pintura com pistola de ar, que ficaria mais barato. Como vi que ele estava usando o nome de uma lona famosa, perguntei o que ele estava fazendo e começou um diálogo que nunca mais esqueci:
- Uai, não tá vendo? Colocando nome na lona. 

- Mas não deveria vir com o nome já?

- Aí ficaria mais caro. Esse povo é muito esquisito. 15,00 o metro sem nome e 20,00 com nome. Pinto ele por 0,50.
Não lembro dos valores porque já mudou a moeda uns par de vezes mas era dessa ordem.

- Mas papai, isso não é falsificação?

- Como assim? Falsificação se fosse de outro fabricante. É o mesmo.

- Mesmo assim, pai. Às vezes o cara tem duas linhas, uma cara e uma barata e o nome é para poder diferenciar. 

- Filho, aprendi a fazer isso com o turco aí da frente. O vendedor me falou que a porra da lona é a mesma. O comprador é esse boliviano aí, dom Rafael, que esta me ajudando a escrever o nome. Queria que você me dissesse a quem estou enganando? Você acha justo eu pagar mais pela porra de um nome? 

- Pai, ele não vai usar a lona. Ele vai revender. Você esta ajudando ele a tapear outras pessoas. A lona não deve ser igual. Às vezes eles refugam no controle de qualidade e mandam sem nome para não comprometer a marca. São pequenos defeitos. 

- Isso quando a empresa é mais ou menos séria. Quando é séria de verdade, botam outra marca, ou escrevem que é de segunda, ou standart, e a outra de luxo. Mas não é isso não. Eles mudam só a margem de lucro. Procura defeito aí, se encontrar eu paro.

Nem perdi tempo pois não encontraria e mesmo que tivesse, naquele momento ele não ia concordar. 
Fui tomar café sozinho aquele dia e um pouco preocupado. Uns dias depois ele me chamou no depósito, queria mostrar que a idéia da pistola tinha dado certo. 
Pronto, pensei, agora a falsificação vai ser incrementada e com minha participação. Pura que pariu.
Cheguei no depósito e vi o serviço. Tinha que tirar o chapéu e dizer que meu velho era foda mesmo. Estava lá o novo molde da forma, agora já feito completo e não letra por letra e escrito nos tamanhos normais "LOCOMOTIVA"
 e embaixo, na própria chapa, completado "By A.Marinho".
 Ele olhou para mim e falou:

- Satisfeito. Falsificador não assina. Podem falar que é replica, e te garanto que em pouco tempo, essa vai valer mais.

Por incrível que pareça, o turco da frente quis acrescentar o A. Marinho e, por mais incrível ainda, ele não deixou. Sugeriu que escrevesse, "Turco, em frente do A. Marinho", ou seria falsificação. Quem agüenta?

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