quinta-feira, 16 de junho de 2011

Carlitos

Carlitos foi empregado do Marinho na época que existia a tal da estabilidade do emprego e que depois foi substituído pelo fundo de garantia de tempo de serviço, o conhecido FGTS. O empregado, à medida que ia permanecendo no emprego, ia adquirindo um direito a uma indenização quando fosse demitido, que crescia com o tempo de uma maneira geométrica e não linear. O que acontecia é que a partir dos 10 anos ele se tornava seu sócio, pois não tinha dinheiro que pagava a indenização para demiti-lo e ele atingia a tal da estabilidade. O que acontecia nas grandes empresas é da mesma demitir o empregado antes dele atingir essa estabilidade e depois, se fosse o caso, recontratá-lo para começar a contagem do tempo novamente, uma vez que o mesmo não era cumulativo.

Não era a política de vovô Marinho e nem a de seus filhos e sucessores na empresa. Tinham um monte de empregados com essa estabilidade e todos trabalhando muito bem obrigado, como o velho Juvenal que morreu empregado e sua mulher continuou recebendo como se ele estivesse vivo até morrer também, Daniel, Vinino, Anacleto e muitos outros. Foi assim que, o governo, percebendo que não era esse o procedimento da maioria das empresas, resolveu criar o fundo de garantia e que funciona até hoje. Como todos sabem, mensalmente a empresa deposita 8% do valor do salário do empregado numa conta dele e quando ele for demitido sem justa causa, levanta esse dinheiro, e a empresa tem que pagar ainda mais 40% do valor acumulado. Com isso a empresa passou a ter um encargo linear e acabaram-se as demissões e a estabilidade por tempo de serviço.

Mas houve uma época de transição, onde o empregado podia optar entre ter estabilidade ou entrar para o fundo. Todos fizeram um acordo com a empresa e através de um prêmio pelo tempo de serviço tornaram-se optantes do FGTS, quase todos, mas mesmo entre os filhos legítimos tem uma ovelha negra. O Carlito não quis perder a estabilidade dele por preço nenhum. Seu plano maligno já estava traçado e começou um dos combates mais longos da vida de seu Alberto Marinho. Ele fazia questão de fazer tudo errado, para que, em um momento de descompensação de algum dos sócios, fosse demitido e ele mamar numa bolada, como ficaram sabendo que ele falava. Ele passou a ser subordinado de papai, depois de um probleminha com um dos irmãos, quando quase perdeu a cabeça e fez o que ele queria. Como papai era mais tranqüilo ele partiu para uma terceira opção que era fazer o Carlitos pedir as contas. Teve um dia, lá pelos anos de 1970, que eu de férias em Corumbá, encontro o Carlitos, na rua Delamare com uma telha eternit de 2,4 m na cabeça. Cheguei no Marinho e perguntei a papai o que era aquilo e ele me explicou que a Brigada Mista, que ficava a 5 quadras do marinho tinha comprado 300 telhas daquelas e o Carlito estava fazendo a entrega. Eram 10 viagens por dia e em 30 dias úteis ele terminava. Falei pra papai que aquilo não era humano o que o deixou muito puto comigo. Como ia ficar as férias todas aqui, ele transferiu o Carlitos para o Posto que o Tontonio tomava conta e onde eu passava a maior parte do meu tempo. Me falou isso e completou que eu ia aprender não só sobre ser humano, como também sobre "O" ser humano.

No segundo ou terceiro dia da nossa discussão, eu estava no posto e falando sobre o Carlitos com o Tontonio, quando ele, com o queixo, me apontou uma camionete. Na carroçaria estava o dito cujo abastecendo um tambor de 200 litros de óleo diesel. Depois de uns 30 minutos, como ele não terminava, o Zé gritou para ele:
- E ai Carlitos, enche esse negócio ainda hoje?
Ele, de cima da camionete, gritou:
- Não sei não, seu Zé. Tudo que eu jogo aqui sai por aquele outro buraquinho ali.
Quando corremos para lá, vimos aquele rio de óleo diesel escorrendo da camionete. A porra do tambor estava furado e o filho da puta do Carlito não avisou ninguém e jogou um monte de óleo diesel fora. Estava começando o meu aprendizado sobre o quanto o ser humano pode ser desumano. Mandamos ele de volta para papai, com o meu sincero pedido de desculpas.

Mais tarde, alguns anos depois, eu consegui fazer um acerto com o Carlitos, não por dó dele, mas de papai, que morreu sem saber que a última sacanagem quem fez foi o Carlitos. No acerto incluía uma entrega de 200 telhas de 4 mm de 2,44 m. Ele falsificou o documento e o alterou para 2000 telhas de 6 mm. Tudo que eu tinha negociado foi por água abaixo e ele saiu com o valor que ele queria. Grande F da P, como dizia papai.

Apesar de tudo, ainda consegui aprender alguma coisa com ele, ou melhor, através dele.

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