segunda-feira, 18 de abril de 2011

Vicentinho

Vicentinho é meu primo, filho caçula de tia Dirce, e uns 3 ou 4 anos mais novo do que eu. Era o pentelho da época, que entregava a gente para os mais velhos. Toda arte, tínhamos que fazer escondidos dos adultos e dele. Sempre que papai e mamãe iam para São Paulo, eu ficava em sua casa porque tinha o Dirceu, da minha idade, e tia Dirce era minha madrinha e tia preferida. Ficava muito bem lá.

Numa dessas vezes, estávamos jogando bola no pátio, apesar do tio Vicente nos ter recomendado dezenas de vezes, que não fizéssemos isso ali, pois era onde estavam as suas gaiolas com os passarinhos de que ele mais gostava. O principal era um canário belga, cantador igual nunca vi, e estava na gaiola maior e na parte mais visível, presa no batente da porta, na parede principal do pátio. Numa disputa de bola, a pelota subiu e derrubou a gaiola. Não pudemos fazer nada, era o dia dele, e o bichinho nem sentiu. Morreu sem dar um pio, agora, já nós..., foi um corre corre danado, “e agora?”, "tamo tudo fodido!", “tio Vicente vai matar um”.., até que tivemos a idéia.

Era ele quem fazia as gaiolas. Eram todas de madeira e arame. Lembro bem, após a janta, era seu hobby, ele sentava a mesa e pegava suas ferramentas, um arco de pua para furar todas as madeirinhas por onde passariam os arames e um serrote de ferro, para serrar as madeiras sem deixar rebarba e ficava horas ali na fabricação. Era tão bem feita e resistente, que com o tombo de mais de dois metros de altura, não aconteceu nada a bichona. Mas só eu, Dirceu e a praga do Vicentinho que sabíamos disso e resolvemos aplicar o golpe. Fomos num dos arames e demos uma entortada nele deixando um vão maior que os demais. Tivemos até o cuidado de pegar o cadáver do canário e checar que ele passava por ali. Limpamos o alpiste do chão e qualquer outro rastro que poderia indicar que a gaiola tinha caído. Preparado a cena, apesar de ser culposo e não doloso, poderia se dizer que era o crime perfeito. O passarinho foi para uma vala no quintal. Tudo feito as pressas pois estava na hora de tio Vicente chegar e a primeira coisa que ele fazia era cuidar dos passarinhos. Baixava cada gaiola sobre a mesa, trocava o jornal que forrava o piso, colocava água fresca e soprava a tijelinha de alpiste tirando as cascas e completava a mesma. Isso em todas as gaiolas, que deviam ser mais de dez. Parece mentira mas quando ele começava a fazer isso os passarinhos começavam a cantar todos juntos, e ele assobiava igual a cada um que ele estava tratando. Hoje, com ele, tia Dirce e todos os velhos da casa já noutro mundo, isso me dá muitas saudades.

Mas voltemos a desgraça. A primeira gaiola foi a do canário belga e quando ele não viu o bichinho ali, já olhou rápido para gente. Estávamos todos como guris cagados e negamos saber o que houve, mas ele na sua experiência já percebeu que tínhamos algo com aquilo. Mas estávamos confiantes de que quando ele visse o vão do arame maior concluiria que o bichinho deu uma forçada ali e conseguiu fugir. Afinal de contas, quem canta tão bem assim deve ter inteligência e força suficiente para fugir de uma gaiola de arame galvanizado. O plano foi por água abaixo quando o Vicentinho, com uns 6 anos, não teve calma suficiente para esperar ele achar a falha na gaiola sozinho e de uns 10 metros de distância gritou: - Já sei, ele fugiu por esse buraquinho ai!! Correu até a gaiola e ficou procurando onde tínhamos entortados os arames. Como era coisa imperceptível, vira pra nós, e pergunta: -Cadê o buraquinho? Dirceu, branquinho virou pra mim e falou: -Fudeu. Na hora, ele que me ensinava todos os palavrões, eu perguntei: -É fodeu ou fudeu? Ficamos o fim de semana em casa, de castigo, e a única diversão era dar cascudo na porra do Vicentinho.

Terminei o ginásio e fui estudar em São Paulo. Vicentinho foi para Cuiabá e acabou se casando por lá. Perdemos o contato e ficamos uns 20 anos sem nos encontrar, até que ele veio a Corumbá. Encontramo-nos na rua, isso há outros 20 anos atrás, e perguntei se ele já tinha ido visitar mamãe e papai. Ele confirmou e me contou como foi a visita e quase morri de rir. No fim da visita queriam ir embora, mas não conseguiam se despedir. Era hora da novela e ele detestava assistir, mas perdeu a hora de sair e não queria interromper meus dois velhos que eram fanáticos. Resolveu fingir que também assistia e esperar o primeiro intervalo. Na hora percebeu que os dois estavam cochilando e ficou chateado de acordá-los e assim foi. Acordavam para ver a novela e cochilavam um pouco antes do intervalo e passavam o mesmo todo assim. Ai que ele teve a idéia de ficar comentando o acontecido na telinha até o intervalo, para não deixar os dois dormirem. Quando deu o plim plim ele se levanta para de despedir e Mamãe fala: - Já que você é noveleiro e gosta, espera terminar que faço um cafezinho e ai você vai. Ele pensou que o tiro poderia sair pela culatra e que se perdesse aquela oportunidade ia dormir no sofá também. Dispensou o café, arrumou mais desculpas que o necessário e se mandou. Soube da visita pelo Vicentinho e quando perguntei a mamãe sobre a mesma e como estava o Vicentinho, ela respondeu: - Ah, só falamos de novela ele assiste todas.

Hoje o Vicentinho é um grande empresário em Cuiabá, e nos vemos só a cada 5 anos, ou nas horas mais tristes, como na morte da tia Dirce, mas estamos sempre sabendo um do outro. Grande cara e parece que depois da visita ficou noveleiro mesmo.

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