segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Disputa da jumenta


Em 1984, a Marinho Trading estava no auge da exportação para a Bolívia. Éramos representantes de grandes companhias e o Tontonio com papai vendiam pra cacete. Tínhamos dois caminhões Volkswagem de 16 toneladas de carga útil para trazer mercadorias de São Paulo. O movimento era tão bom que papai vendia a carga em trânsito. Nem chegava a descarregar nos nossos depósitos, regateava, ia direto para a fronteira e já entregava na Bolívia. Para isso, tínhamos dois motoristas, o Paulinho e o Paraíba. Os dois eram muito bons, mas não se davam muito bem. O "linho" do primeiro era pelo seu tamanho, 1m50 no máximo; e o apelido "Paraíba", de quem nunca soubemos o nome, era por causa de sua origem. Esse último era apaixonado pelo caminhão azul dele. A cabine parecia uma extensão de sua casa, com cortinas, São Jorge preso no retrovisor, adesivos decorativos no painel e quebra-sol. Não sei se a extensão era de sua casa ou de um bazar de pechincha, de tanto penduricalho que havia. A buzina, ele mandou trocar, e colocou uma de navio. O cara era muito engraçado, de um tanto que, uns cinco anos depois de ter saído da firma, o vimos em um programa humoristico do Silvio Santos.
Era juntado com uma negona que dava dois dele, tanto na altura como na largura, ou seja: no total, ela dava quatro dele, e era mais feia que cão chupando manga. E não se sabe por quê, talvez pelas viagens constantes, ele morria de ciúmes dela, principalmente com o Paulinho.
Numa dessas, Tontonio fazendo as programações de viagem, mandou ele voltar para São Paulo e o Paulinho ficar para ajudar nas entregas locais. Ele ficou meio relutante, pois sempre iam em dupla com o caminhão de um remontado sobre o do outro – mas aceitou na hora. Para voltar dez minutos depois, no maior bate boca com o Paulinho. Com os dois na sala do chefe, começou o diálogo que quase matou a gente de rir: primeiro com o Paraíba, respondendo a pergunta do Tontonio, de "que merda estava acontecendo":
– Paulinho quer que eu viaje para ele ficar sozinho aqui. Ele quer tomar a minha jumenta.
– Que porra de jumenta é essa, Paraíba?
– É a Leocádia, seu Zeantonio, minha mulher.
– Mas jumenta?
– É como chamo ela, carinhosamente.
O Zé resolveu envolver o Paulinho na conversa, e perguntou o que ele fez, que tem que respeitar o companheirismo e isso implica em suas mulheres. Aí a merda aconteceu, quando o Paulinho respondeu:
– Seu Zé, o senhor conhece a Leocádia?
Nem esperou pela negativa e completou:
– Aquilo é uma jumenta mesmo, e nem se eu tivesse achado meu pau no lixo eu colocaria ele ali.
A baixaria aumentou, pois o Paraíba ficou mais injuriado com a explicação de por que não do que ficaria se ele tivesse confirmado suas suspeitas.
Tivemos que chamar reforços para apartar os dois, o que acabou com a saída do Paraíba e a volta dele para sua terra natal. Levou a Jumenta junto.
Muito tempo depois descobrimos que o Paulinho realmente se perdia naquelas carnes e que ela o chamava de "meu burrico", e quem o conhecia sabia que não era pela sua pequena estatura.
Coisas da vida.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Suprimentos


A parte mais complicada da Ema é a de Suprimentos e Logística. Você tem que atender um monte de nego desorganizado, tudo é urgente, e o acesso a algumas fazendas não é fácil. Caminhão, lancha e trator. São dois transbordos e dois dias de viagem. Construção, então, pedra para virar concreto, lá não tem nem para jogar em louco, tem que sair daqui ensacada. Mas tive pessoas muito competentes atuando na área, como Suzana, Rosangela e agora a dupla Vitor-Quidinho. As principais características são honestidade, organização e persistência, que nesse caso é sinônimo de saco grande. Mas teve lances engraçados na área. Com a saída da Suzana, que já estava conosco há mais de dez anos e conhecia tudo e todos, a entrada da Rosangela foi meio traumática – para ela, no início. Ela estava acostumada com trabalho de banco, em que só conversava com nego de meia e sapato. Quando mudou o público para chinelo de dedo, ela estranhou muito. Não tinha um mês de firma, quando entrou em minha sala quase chorando e pedindo as contas. Motivo: seus subordinados não a respeitavam. Depois de muita insistência, pois eu queria as suas contas só com essa explicação, resolveu falar que o Seu Antunes tinha xingado ela. Mais cinco minutos de conversa para saber de que foi xingada, e ela, relutante em dizer aquelas palavras de baixo calão, falou: "de 'filha da puta'".
Na hora, eu disse que quem ia ser demitido era ele, que eu não admitia essa falta de respeito, como é que ele chega para seu chefe, e ainda mais uma senhora, e a chama desse nome, assim na cara!
Aí ela se assustou e disse que não foi na cara, foi por telefone.
– É a mesma coisa, você dá uma ordem para ele e ele fala, não vou fazer, sua filha da puta. Não tem cabimento.
Aí ela me corrigiu dizendo que não foi bem assim. Ela tinha dado uma ordem para ele carregar o caminhão, junto com o Vitor, e o Quidinho, antes de desligar totalmente o telefone, falou para o Vitor: 
– Vamos carregar a porra do caminhão... é, só nós dois... por quê? Por quê?... Porque a filha da puta quer.
Uma observação: Quidinho tinha 60 anos, e o Vitor perde no braço de ferro para um mosquito.
Com a história melhor contada e já conhecendo as peças, expliquei a ela que esse é o linguajar desse povo, e tinha que ser interpretado corretamente. Primeiro, ele não se dirigiu a ela, uma vez que ele achava que ela já tinha desligado a porra (colocada propositadamente na frase) do telefone. Segundo, o "filha da puta" foi para se antecipar ao que o Vitor ia falar, e mostrar a ele que ele já tinha tentado de tudo e o jeito era carregar a porra do caminhão. Ela se tranquilizou, eu acho, e voltou para sua sala. A conversa surtiu efeito e percebi isso quando estava em outra reunião com ela, quando atendeu o seu celular e fiquei escutando o papo. Foi mais ou menos assim:
– Fala, Quidinho.
– ....
– Porra, meu, manda ele se fuder. Nem a pau, só paga depois da entrega. Eu mesma que falei com esse veado. Tem até contrato escrito.
Desligou o telefone e, quando me viu, deu uma risadinha sem graça e falou:
– O senhor tinha razão. É a única linguagem que entendem. Já acostumei. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A coincidência


Para entenderem esta história recente, vou ter que contar alguns detalhes íntimos – mas não sórdidos – de meu concunhado Cauto. Ele é um dos grandes cagões que eu conheço, nível de meu falecido primo Zé Alberto e de meu irmão Tontonio. Para o primeiro, era só dizer que ele estava um pouco (não precisava nem ser muito) pálido, e ele te largava falando sozinho para ir ao médico. Tontonio ficou mais corajoso depois de velho, pois quando mais novo não entrava em um avião de jeito nenhum, dizia que voar era para passarinhos, e teve tempo que nem de carro ou ônibus ele andava. Só de trem – e isso aqui no Brasil, com essa rede ferroviária maravilhosa nossa. O Cauto é desse nível para mais, com a diferença de ser silencioso. É daqueles que sofre calado e só fala quando não tem mais jeito. Tomar injeção sozinho, por exemplo, nem amarrado. Mena tem que ir e segurar na mão dele. Se não tem Mena, qualquer um serve. Já teve Miraci, uma tia, que foi recrutada do balcão da farmácia, onde ela estava fazendo compras, e ele aloitando com o aplicador da injeção. Quando a viu, já chamou para ficar ao seu lado e de mãos dadas. De outra feita, estava com Beto em Campo Grande fazendo os exames anuais para seu brevê, quando chegou a hora da coleta de sangue. Segundo a peça, é pior que injeção pois tem agulha igual, mas é na veia, pior, e, ao invés de injetar, chupa – muito pior. Já tinha deixado passar uns dez na frente e já era o último da fila, quando teve que resolver se encarava ou abandonava a carreira de piloto para não ver aquele ferro entrando em suas carnes. Foi para o sacrifício e, quando saiu da sala de torturas, estava quase aos prantos e Beto teve que ampará-lo e dirigir seu carro direto para o hotel. Esse é o personagem principal de nossa história e, depois do acontecido, a coisa se confirmou: ele é mais rabudo do que cagão. Há menos de um ano, ele me cai com o avião, sozinho, e não sofre nenhum arranhão. Agora, há uma semana, foi para São Paulo acompanhar a esposa para um exame com o Dr.Antônio Carlos Lopes. Já falei dele aqui: melhor cardiologista de São Paulo, quiçá do Brasil e, se duvidar, do mundo. Seu consultório é dentro do Einstein, hospital que dispensa comentários. A consulta estava marcada há mais de dois meses. A coisa lá é de primeiro mundo. Em vez de ficar aguardando numa sala de espera, você já vai fazendo uns exames, uma tal de triagem, feita por enfermeiros, que vão medindo temperatura, pressão, eletrocardiograma etc, e ele acompanhando a Mena. Na hora da pressão, ele pediu para a medidora verificar a sua. Estava cismado. A mulher, sem questionar, bombou o homem, e só falou: "18x10". Saíram dali e foram para a sala da médica assistente para a segunda triagem. Ela examinou a Mena, que falou:
– Cauto está com pressão meio alta, 18x10. Não seria bom aproveitar e fazer um eletro nele?
Ela concordou na hora, e pôs o homem de volta para trás e a filação da consulta da esposa continuou. Fez o eletro, e ele mais quieto que guri cagado. Quando entregaram o exame para a assistente, ela virou para Mena e falou:
-Você está ótima. O Dr já viu seus exames e vou relatar o clínico para ele. Vai querer te ver só para dar boa tarde. Agora, o Cauto, ele vai querer examinar. Fica aí que vou chamá-lo. – Nessa hora, falam as más línguas, o homem branqueou. O Antônio Carlos chegou com o exame na mão, nem olhou para Mena, e foi direto no Cauto. Depois de auscultá-lo, falou: 
– Mena, você está ótima. Agora, o homem aqui só sai depois de uma angioplastia e provavelmente com um stent. Está com uma artéria principal bem entupidinha.
Ele só balbuciou:
– Mas eu só pedi para medirem a minha pressão.
Ainda tentaram adiar a coiseira para uma semana, tinham um casamento e um monte de desculpas. Nenhuma colou. Cinco horas depois, o homem que se cagava todo para tirar um sanguinho, estava com um cateter no coração e tudo filmado em alta definição e, o pior, com ele acompanhando. Foi colocado um stent na artéria principal, como tinha previsto o doutor.
Nisso, em Corumbá, no domingo almoçamos o nosso tradicional churrasco e o pessoal comentando sobre o ocorrido. Um falou que ele era um cara de sorte, caiu com o avião e não aconteceu nada; outro, que ele tem sete vidas, pois descobriu o entupimento dentro do Einstein e no consultório do maior cardiologista, e estava lá só como acompanhante da mulher.
A pérola veio com Gustavo, meu cunhado. No meio dessa conversa toda, ele falou:
– O problema de Cauto é de surdez!
Todo mundo parou de falar e perguntaram quase em coro:
– Surdez? Por quê?
– Jesus tá chamando faz horas, e ele não escuta.
Humor negro do gordo.
Mas a chegada aqui foi com festa. Quando perguntavam para ele o que aconteceu, a resposta começava sempre do mesmo jeito:
– Eu só pedi para medirem a minha pressão.
Mas, realmente, não é fácil.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

93


Esta é a historia 293 e, quando chegou a de número 100, mudei a numeração para A01. A de hoje é, então, a B93. Esse número tem me acompanhado a vida toda. Vira e mexe, ele surge espontaneamente. Começou com a chapa do meu primeiro carro, o Cônsul 6-93, quando eu tinha 12 anos. Estava sucateado na garagem de casa e eu o reformei todo.
Fui para o arquidiocesano interno e toda a roupa tinha que ser numerada, e o número... 93.
No Cursinho Anglo Latino, era da turma 10.000, e o número...10.093.
Entrei na faculdade de engenharia Maua, em 1968, e era da turma 7000, e o número... 7.093. 
Dessa vez em diante, eu adotei o número, e toda vez que pudesse escolher, eu ia nele; mas, às vezes, espontaneamente, ele aparecia na minha vida. Como me apartei da família muito cedo, porque com 14 anos fui estudar sozinho em São Paulo, sempre tive um trauma com papai. Não sei por quê, mas todas as vezes que tocava o telefone de Corumbá, à minha procura, me vinha a ideia de que algo tinha acontecido com ele. 
Quando ele estava com uns 70 anos, apareceu um problema nas suas cordas vocais e, na hora, todo mundo achou que era um câncer – o que, na época, era uma condenação à morte. Nesse momento, me veio o 93 na cabeça e pensei: " ele não vai antes dos 93, de jeito nenhum". Dr. Moisés Amaral cuidou dele e era só um calo que, com 30 dias sem falar um "a", como ele contava, ficou bom. Não vou negar que quando ele fez 93 anos eu fiquei preocupado, quando aquele fato acontecido mais de vinte anos antes me voltou à memória. Ele estava já de bengalas australianas, daquelas que pega pelo pulso, a memória recente já estava dando uma rateada, mas de resto tudo 100%, igual a um guri novo, como ele também gostava de falar. No dia 7 de setembro, ele caiu e fraturou a cabeça do fêmur. Começou o nosso martírio. Foi operado em São Paulo e, num primeiro momento, tudo correu às mil maravilhas. Ele estava se recuperando muito bem quando, inexplicavelmente, teve um pequeno derrame que afetou somente, por incrível que pareça, exatamente a corda vocal, e isso complicou tudo. No dia 15 de março ele faleceu, com 93 anos. Hoje, 08 de junho, ele estaria fazendo 99 anos. Tem festa no céu, tenho certeza.