segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Ataque

Tudo no mundo tem lógica e explicação, mas não para todos. Já falei varias vezes aqui sobre o Zé Mauro, nosso piloto, uma pessoa que considero coerente e observadora. Você coloca essas duas qualidades, mais sessenta e poucos anos de experiência em uma pessoa e você terá como resultado, conforme Alaer Garcia, um sábio. Gosto de conversar com ele e escutar seus "causos". O que nunca entendi, e não por falta de perguntar, é seu medo por cachorros. A coisa beira a sandice. Teve uma vez que estávamos procurando umas recolutas, pois uma cerca de divisa tinha se queimado e fomos até a fazenda vizinha. Pouco antes do pouso, ele me avisou que a pista dali não estava sendo usada ultimamente e que teríamos que tomar cuidado, pois a torre da biruta devia estar sem a mesma e se descuidássemos poderíamos trombar com ela. Pousamos com o olho no cano, bem na cabeceira da pista e só conseguimos vê-lo, pois sabíamos de sua existência. Um perigo filho da p... O chessna 206 tem uma característica. Ele só tem duas portas, a da frente fica do lado do piloto e a de trás do lado contrário. O passageiro da frente não consegue descer antes do piloto. Depois que ele taxiou o avião em frente da casa da sede, a mesma ficava na beira da pista, fiquei aguardando ele descer o que não acontecia. Pela janela ele gritava chamando um gurizinho que não o atendia e isso se prolongou por uns dois minutos com eu, sem entender o porquê daquilo tudo, querendo descer. Lá pelas tantas o guri encostou e aí ele abriu a porta perguntando se tinha cachorro brabo ali. Mesmo com a resposta negativa, fez o bugrinho escoltá-lo até a casa do capataz. Perguntado de onde vinha esse medo todo ele sempre respondia que "precaução não era sinônimo de medo", uma de suas pérolas.
De outra feita, estávamos passando uns dias das férias de julho em Piratininga, e além da turma normal, eu e Beá com os filhos, estavam o Choulian, D. Virginia e o Chu. No dia 22 de julho como era aniversário de Santa Anatalia, com 20 minutos de vôo fomos todos para lá. Eu pilotando o Sky Lane e o Zé Mauro no 206. Chegando lá como tinha gente para dar com o pau, só conseguimos acomodar as visitas e a turma da casa foi para a varanda dormir na rede. Como estava frio o Zé Mauro resolveu dormir no avião. O detalhe era a Nina, um cadela fila brasileira de meu cunhado, o Guto, que devia pesar uns 40 quilos. Era um monstro de grande, mas muito mansa. Como tinha as orelhas cortadas, tinha uma aparência de brava, mas estava solta ali na festa transitando entre os convidados e com um monte de crianças. O Zé passou o dia de olho nela. Teve o baile a noite e fomos todos dormir muito tarde. No dia seguinte cedo, levantei com a dor natural de noite dormida em rede e fui até o balancim da sede. Toda a fazenda tem um cercado, ou de madeira ou em arame de 6 ou 8 fios, em volta de toda sede para não deixar entrar animais, gado ou cavalo na horta ou pomar e fazer estragos. Normalmente essa cerca é parte de outra que fecha toda a pista de pouso. Fiquei uns dois minutos ali olhando se estava tudo certo com os aviões que estavam a uns 50 metros de distância, quando me avisaram que o chá estava na mesa e era para ir tomando a medida que fosse levantando pois não dava para atender a todos de uma vez. Fui tomar meu café e uns 15 minutos depois me levantei para dar lugar aos que estavam chegando e coincidentemente voltei à pista, no mesmo lugar que estava antes do chá. Estranhei ao ver uns reflexos no vidro do avião, e quando firmei a vista que percebi que era o Zé Mauro me chamando. Fui ate lá para entender o que estava acontecendo e ele me pediu para acompanhá-lo até a casa grande pois estava acordado desde às 6 da manhã, já tinha chamado um monte de gente que chegava na beirada da pista, inclusive eu, e cada vez que tentava descer do avião aparecia a Nina e o recolhia de novo. Não acreditei muito na história, mas não o desmenti também.
A coisa toda só foi se esclarecer alguns meses depois desse último ocorrido. Fomos à fazenda do Romero de Barros apartar e ferrar um gado que tínhamos comprado. Descemos do avião, pegamos as marcas e fomos para o mangueiro. O gado já estava preso, o fogo, para esquentar as marcas, aceso e toda a peonada nos aguardando. Quando escalamos a parede do mangueiro, o Zé Mauro lá de cima, já deu o bom dia perguntando se tem cachorro brabo. Eu já no meio do caminho, e sabendo que ele não desceria se não respondessem, reforcei a pergunta. O não veio em coro acompanhado de algumas risadas. Só depois ele desceu e se encaminhou para onde estava todo mundo. Sem que ninguém entendesse, de debaixo da bancada me sai um boxer, passa correndo por mim sem nem me notar e vai latindo brabo para cima do Zé Mauro. Ele ficou se defendendo com as marcas na mão, uma ele usava para não deixar o cachorro se aproximar e a outra já levantada na altura da cabeça pronta para bordoar o bicho. Isso foi até que o dono do cachorro foi até ele e o segurou. Além de pedir desculpas, agradecia o Ze Mauro por não ter matado o bicho e falava que ele nunca tinha feito isso na vida, que era manso de se deixar coçar por qualquer um. Zé Mauro olhou para mim e falou:
- Tá vendo porque não gosto desses bichos? A antipatia é recíproca. Agora vou dizer a verdade, não bordoei porque estava esperando ele se enquadrar melhor e ia ser uma só.
Fiquei quieto mas tinha certeza que se ele tivesse bosta pronta teria se cagado todo.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

EuroMauMec

Era final de 1970. O Brasil tinha ganhado a copa do mundo pela terceira vez e éramos donos da Jules Rimet... até roubarem ela. Dizem as más línguas que foram uns argentinos. Estava engatado firme em um namoro e já para casar, esperando só pegar o canudo, quando terminamos tudo. Muito tristonho, resolvi ir para a Europa com o pessoal da MAUÁ que ia cursar o último ano e faria, como todos os anos, uma viagem de estudos. Estudavam os vinhos, cervejas, as mulheres italianas, espanholas e outras cositas mais e nos intervalos destes importantes trabalhos e quando dava tempo, iam se divertir e conhecer as indústrias de ponta da Europa, como a Mercedes, Herst e outras. Como a minha turma era formada por 50% de repetentes e muitos deles estavam nessa excursão, inclusive o presidente da comissão de viagem, o Ricardo Ravioli e o secretário, Gerson Tognini que eram os meus melhores amigos, eu estava totalmente enturmado.
Dia 02 de Janeiro de 1971, embarcamos na Varig com destino a Lisboa. A excursão era muito bem organizada e se chamava EuroMauMec 1971, euro de Europa, mau de MAUÁ e mec de Mecânica. Tínhamos até uniforme para as visitas. Uma calça cinza chumbo com um paletó preto, e o crachá da escola. Quando íamos fazer alguma besteira, a primeira coisa era tirar o crachá. Foi uma viagem de dois meses, começando em Portugal, seguido por Espanha, França, Bélgica, Inglaterra, Escócia, Noruega, Dinamarca, Suécia, Alemanha, Áustria, Suíça e Itália.

Cassino, conhecemos todos, e nosso prazer era estudar as máquinas e achar um jeito de ganhar delas, mesmo que necessitasse de métodos pouco convencionais, como da vez dos caça níqueis do cassino de Estoril. Descobrimos como era seu mecanismo e como lográ-lo e era muito simples. A hora que você colocava a moeda, a mesma fechava um circuito e acionava um contator para liberação a alavanca. Quando puxada a mesma abria o contator e ficava travada e para nova puxada era necessário nova moeda. Descoberto isso, percebemos que se enfiássemos umas 10 moedas sem puxar a alavanca, o contator ficaria travado fechado e poderíamos puxar a alavanca quantas vezes quiséssemos sem ter que colocar novas moedas. Ficava eu e o Ricardo, ele fingindo que colocava as moedas e eu puxando a alavanca. Quando nossos bolsos enchiam e o paletó ficava guenzo, um cuidava da máquina e o outro ia trocar as moedas. Na terceira noite os fiscais descobriram e não nos deixaram mais sozinhos, mas já tínhamos acumulado uns bons dólares e tido aquele prazer quase sexual de ter ganhado de quem não perde nunca.

Alem de roubar os cassinos, queríamos internacionalizar o Bráulio. Existia uma competição muito forte de quem traçaria a primeira européia. Apesar de sermos jovens, bonitos, prestes a entrar para uma classe dos com curso superior, cujo segmento era de menos de 1%, na época, éramos bons para o Brasil. Na Europa éramos pé de chinelo. Começamos paquerando só aquelas mulheres lindas, e em Portugal nem bola na trave. Quando falavamos que éramos brasileiros, as mulheres quase que faziam que nem o Paulinho do Nhato, colocavam as mãos na panqueca e saiam correndo. Tínhamos a fama de só pensar "naquilo". Em Madri, conseguimos tomar chá com umas espanholas e talvez até tivesse conseguido alguma coisa se não fosse pela burrice do Gerson. Estávamos com o Ricardo, em um desses bares cafés em Madri, quando na mesa ao lado sentaram três espanholas lindíssimas. Trocamos olhares e perguntei se podíamos juntar as mesas, pois éramos brasileiros e estávamos com dificuldades para fazer o pedido, pois o garçom não estava com paciência de nos explicar os pratos. Tudo isso falado em um Português perfeito, conclusão, elas não entenderam nada mas acharam muita graça. Numa segunda tentativa, com gestos e um castelhano de fronteira me fiz entender e juntamos as mesas. Tomamos o chá juntos, apesar de eu querer café, mas não era esse o objetivo real, e na saída já meio acertado que iríamos conhecer o bairro que elas moravam, uma delas cochicha no ouvido da outra e pede para esperarmos que ela tinha que voltar ao restaurante. Como já tínhamos apartado uma para cada um, a que retornou era a do Gerson. Ele, na hora se arrepiou todo, disse que tínhamos que ir embora, pois tínhamos compromissos e, como não entendíamos o motivo, resolvemos acompanhá-lo e largamos as três espanholas para trás. Posso até dizer que a minha, a Graziela, se despediu com os olhos marejados de lagrimas. Quando saímos que o Gerson explicou o motivo. Ela voltou ao restaurante para trocar o absorvente, pois ele escutou muito bem ela dizendo alguma coisa do seu paquete. O Ricardo, que falava italiano e sabia o que era paquete queria dar nele enquanto repetia, "paquete é pacote sua anta". Ela deve ter deixado algum pacote no restaurante. Voltamos correndo, mas só a tempo de vê-las entrar no taxi e saírem. Quase matamos o Gerson. Depois disso foi só fora.

Na França, só o Fernando Pio conseguiu chamar a atenção, ele era um moreno quase mulato, mas foi de uma bichona num mustang conversível. Ele seguiu o grupo por umas duas quadras. Não sabíamos em quem a linda estava de olho e começamos a nos apartar até que, quando ficou só o Fernando, ele, ou melhor, ela o abordou. Isso com todos gritando que a aposta era de comer panqueca e não podia ser acompanhada de salsicha. Na Bélgica, nem tentativa. Em Londres tinha uns pub's muito bons para paquerar, mas a língua era tora. Se já tínhamos se ferrado com o Dom Quixote, imaginem com Sheakepeare. Até consegui ir à boate com umas inglesas e fiquei bem animadinho pois ela respondia OK para tudo. Quando vinha algum amigo conversar com a gente, eu para tirar sarro falava a ele que teríamos uma noite de sexo selvagem ao que ela respondia com o "OK" dela. Mas o máximo que consegui foi um beijo nas bochechas na hora de despedir. Na Escócia tínhamos uma guia muito linda e achamos que dali ia sair o vencedor da aposta. Mas não teve jeito, o atropelo foi muito grande. Eram 19 homens dando em cima de uma única mulher e ainda por cima era Argentina. Na Noruega, necas de pitibiriba. Na Dinamarca, país do pornô, com as mulheres mais lindas que existem, as que podiam topar alguma coisa deviam estar todas trabalhando, pois nenhuma ao menos olhou para agente. Quando chegamos a Amsterdam e falaram da rua das vitrines, fizeram a primeira mudança de regras na aposta, pago não servia. Os 19, sem exceção foram para lá e foi uma das coisas mais interessantes da viagem. A rua das vitrines, como o nome diz, são casas em que o quarto tem uma janela de vidro com vistas para a rua, ou melhor dizendo, da rua tem vistas para o quarto. Ficavam as mulheres deitadas na cama com camisolas ou baby doll super provocantes esperando os clientes. O preço era do preservativo, e da ordem de U$20,00 dólares cada. Era obrigado a comprar da dona e a quantidade livre, sempre pagando 20 por cada um. Usar o mesmo duas vezes foi tentado pelo André, sem sucesso. Num perfeito holandês ela deve ter mandado ele tomar no rabo mas se éramos ruins de espanhol, imagine holandês.

Assim foi em tentativas infrutíferas até chegarmos a Cortina d'Ampezzo, uma estação de esqui, na Itália. Ali eu ganhei aposta, que vou contar na próxima, mas adianto que não foi fácil.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Minha melhor professora de Português

Já falei que a Maria Teresa foi a minha melhor professora de português. Os erros que aparecem neste blog são culpa exclusiva dela e da Laura, minha filha e editora. Aqui na minha região o provérbio que mais gostamos de usar e aquele do "mato a cobra e mostro o pau". Tempos atrás recebi uma carta dela sobre as férias que ela, com alguns amigos, passou aqui no pantanal. Foi uma das coisas mais lindas que já recebi e, sem sua autorização, vou reproduzi-la aqui. Alguns pequenos enganos eu corrigi. O resto é ipsis litteris.

AVENTURAS NO PANTANAL MATOGROSSENSE

Estamos todos ainda em estado de graça com as emoções que tivemos com a nossa viagem ao pantanal em julho. Tudo começou na fazenda S. Bento, que fica na metade do caminho entre Campo Grande e Corumbá*. A sede é linda, toda rodeada de mangueiras. Na entrada, suscitando o deslindamento dos visitantes, há um enorme coqueiro que serve de viveiro para as araras-azuis. No final da tarde, dezenas delas ali se aninham dando-nos a impressão de que a árvore esta carregada de frutos azuis.

Ainda temos na boca o sabor do delicioso caldo de piranhas, daquelas ventrechas de pacu (sabiamente trazidas por Bea, pois se dependesse dos pescadores...). Sem falar no queijo Nicola, da chipa e dos doces da Jaci (única vilã da história, pois fez todo mundo voltar mais pesado). Como esquecer o lindo trajeto entre São Bento e o Pesqueiro com as inúmeras invernadas e seus capões cheios de carandás, ingazeiros, bocaiúvas e pimenteiras, sem contar os majestosos tamburás plenos de flores amarelas a prenunciar a proximidade do Rio Miranda. Parecendo dar boas vindas um casal de araras azuis seguia o nosso carro. Emas, capivaras, quatis, tuiuiús, veados, surgiam aqui e acolá dando-nos uma amostra da riqueza animal que iríamos encontrar.

E o rio Miranda, com suas águas mansas e límpidas, que torna-se ainda mais majestoso ao cruzar o Rio Vermelho. Rio sábio este que escondeu todos os pacús, dourados e pintados e generosamente ofereceu muitas piranhas aos pescadores (quem ia agüentar o Nonô, Chu ou Carlão, se algum deles tivesse pescado um pacú de 10 kg)... E aquela sinfonia de pássaros... E o tuiuiú Carioca, que vive roubando os peixes dos pescadores. E os jacarés tomando sol na beira do rio no final da tarde.

Inesquecível foi o emocionante retorno no fim da noite à procura da batida correta no meio do capinzal colonião. Os nossos anfitriões fizeram questão de nos mostrar um mesmo ponto turístico por quatro vezes (realmente aquela simbra é fantástica e aquele cocho um verdadeiro obelisco no meio da invernada... e aquele prático um autêntico guia turístico).

Fomos em dois aviões de São Bento para Pirarininga, em pleno centro do pantanal. Nossos olhos se regalaram, por quase uma hora, com o pantanal visto de cima, com seus longos corichos, vazantes e fazendas (todas com campo de pouso!). Destaque deve ser dado a um dos pilotos que, quem diria, era Tadeu, contrariando totalmente a teoria dos mineiros segundo a qual "burro velho não pega marcha" (brincadeirinha!!!)

Como esquecer da fazenda Piratininga, em pleno Paiaguas, e a nhecolandia, do outro lado do Rio Taquari, (nome dado em homenagem a um fazendeiro chamado Nheco, por sinal antepassado de Bea, que defendeu o Pantanal do ataque de países vizinhos). Quem podia imaginar de encontrar uma mansão no meio do Pantanal!. E as caçadas fotográficas nas vazantes sob maravilhosos crepúsculos. Um show a parte foi a foto certeira de Tadeu num porco do mato a aproximadamente 500 m de distância e a habilidade de Daniel e Chu em retocar e ampliar a mesma lá na fazenda. As fotos dos jacarés também foram incríveis. Eles ficaram assustados com tantos flashes pipocando sobre eles, o Karmam e o Nonô foram os que mais bateram. As melhores foram aquelas tiradas a menos de um metro de distância.

A fazenda Santa Cristina, com suas inúmeras invernadas e aquele gado nelore, tão dócil e branquinho! Soubemos que Daniel fez toque em milhares de vacas para ver de estavam prenhes ou não, razão pela qual elas até piscavam para ele (as fofocas correm...)

A fazenda Perdizes, última a visitarmos (e também a última aquisição da família!) é simplesmente paradisíaca. No caminho, defrontamos nada menos que um viveiro de pássaros e aves aquáticas (tuiuiús, colhereiros, cabeças secas, aranquans, cardeais, impossível enumerar todos!). Como que conscientes da nossa admiração (e com a ajuda de Tadeu que dirigiu em direção a elas) empreenderam revoadas simplesmente impossíveis de descrever! A sede da fazenda fica num local lindo, mais elevado, rodeada por majestosas figueiras, de frente para um coricho, o qual se pensa tornar navegável na época da cheia e assim unir esta fazenda a Piratininga. As vazantes, serpenteadas por frondosas árvores, recobertas de uma fina camada de capim, mais parecem um campo de golfe. Esta topografia com esta vegetação nos faz lembrar jardins de castelos britânicos, só que, no caso do Pantanal, formados e conservador pela própria natureza.

Mas incrível mesmo foi o reencontro com Tadeu e Bea, que não mediram esforços nem logística (desde lanchas até aviões foram mobilizados) para recepcionar esta turma lá dos confins da divisa de São Paulo com Minas Gerais. Incrível foi presenciar a relação de Bea e Tadeu com o neto Rafael. Incrível foi rever Beto, Daniel , Guilherme, conhecer melhor a Pat, esposa do Beto (só não encontramos a Ana, esposa do Guilherme, mas afinal alguém tinha que trabalhar...) Incrível foi constatar que, apesar do tempo e de toda a mudança de vida da família, todos continuam os mesmos: grandes, excepcionais e queridos amigos!.
FIM DA CARTA

Linda, não? E faz valer toda logística, que nem foi tão grande assim. Quem não conhece a Maria Tereza, recomendo que leia, neste Blog, a história título "Maria Tereza", de 30 de abril de 2010.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Importância dos burros 2

Quando comecei a fazer estágio na Ravel estava pensando mais na filha do dono do que em aprender alguma coisa lá. Era uma pequena indústria de artefatos de borracha que fabricava coxins, retentores e uma série de peças automotivas.
O proprietário era o pai do Ricardo Ravioli, um dos meus melhores amigos da faculdade, e da Nena, uma loira de olhos verdes, muito linda e eu era encantado com ela. Mas acabei aprendendo muito sobre esses artefatos tanto com o seu Fosco, esse era o nome do sogrão, como com o irmão dele, seu Angelo, que era o diretor técnico da empresa. A indústria ficava na Lins de Vasconcelos e eu estagiava na parte da manhã na Metal Leve, em Santo Amaro e longe pra burro e a tarde na Ravel. Em frente tinha um barzinho bem fuleiro, desses que quem não conhece bem, não consegue entender como tem gente que freqüenta aquilo. Tinha aspecto de sujo, o cozinheiro tinha um fogão de duas bocas que ficava ao lado da pia e a vista dos fregueses e esfumaçava tudo quando ele fritava um bife ali. Mas era limpinho e muito gostoso, além de ser prático. O dono, já esqueci o nome dele, sabia os dias que eu iria almoçar lá e quando chegava, faltando 10 minutos para entrar no serviço, já tinha um omelete pronto que era a coisa mais gostosa do mundo.

Mas vamos a importância dos burros. A indústria tinha uma caldeira que fornecia vapor para todas as máquinas e era de uma importância fundamental. Caldeira parada, indústria parada. Ela tinha, como qualquer caldeira , um pressostado acoplado ao seu bico injetor e que controlava tudo. As de hoje devem ter essas placas eletrônicas que fazem o serviço, mas naquela época era tudo Mecânico. A pressão aumentava ia pressionando uma mola e a medida que a mesma deslocava fechava a válvula de injeção diminuindo a quantidade de óleo injetada, com isso a temperatura diminuía a mola empurrava o bico ao contrário e aumentava a injeção. Ficava aquele pistãozinho entrando e saindo e a pressão praticamente constante. Como segurança disso tudo tinha uma válvula, dessas iguais a panela de pressão, que se o pistãozinho travasse ou algo parecido ela abria e esvaziava a cadeira. Se ela pifasse também, então iria tudo pelos ares.
Um dia o pressostato pifou e a válvula de segurança acionou. Enquanto esperava a chegada da mesma da Itália, era importada, resolveram colocar um homem controlando a injeção com um registro. Como era um trabalho de alta responsabilidade, colocaram o chefe da fábrica, um sujeito esperto, para fazer isso. Em dois tempos ele pegou o ritmo de como tinha que fazer da maneira mais fácil possível. O ponteiro do pressostato tinha que ficar na faixa verde. Querendo entrar no amarelo ele aumentava a injeção e quando queria entrar no vermelho ele diminuía. Rapidinho ele aprendeu que se deixasse quase no amarelo, e abrisse a injeção mais do que devia, teria tempo de fazer outras coisas antes do ponteiro entrar no vermelho. Na hora calculada, diminuía mais do que devia e sabia quando voltar também. Quando a válvula de segurança acionou pela terceira vez, o Fosco tirou o esperto de lá e colocou o seu Nenê, um ex alcoólatra que não pegava naqueles copos de pinga nem para tomar café. Outra característica dele, era o mais burro da fábrica, daqueles que acreditam em tudo que você conta para ele. Lembro que ele chorava lendo fotonovelas, uma revista de quadrinhos e com histórias de amor e ódio, igual as novelas da Globo. Primeiro encheram a bola dele dizendo que ele ia ser responsável pela vida de todos os empregados da fábrica. Depois não falaram que o ponteiro tinha que ficar no verde, que ia de 120 a 160, mas que não poderia sair do 140, se não iria tudo pelos ares. De cara ele pegou uma caneta tipo hidrográfica, daquelas de escrever em caixa de papelão, foi no vidro do relógio e fez um risco em cima do 140. Colocou um banquinho em frente da caldeira e não tirou a mão da válvula, podia no máximo trocar a esquerda pela direita. Pelo menos duas vezes por dia, quando alguém passava perto, ele pedia que chamassem seu Fosco para ele. Na primeira vez o Italiano chegou esbaforido já achando que a caldeira ia explodir porque o Nenê tinha feito alguma cagada, mas não era, ele precisava ir ao banheiro e para uma coisa tão importante e difícil assim, o patrão que devia ficar no controle, era rapidinho, ele completava. E o Fosco ficava. Quando eu ia estudar na casa dele com o Ricardo e ver a Nena também, conversávamos muito e ele foi a primeira pessoa que me mostrou a importância de ter as pessoas certas nos lugares certos e o seu Nenê era o exemplo que ele dava disso. Grande cara foi seu Fosco Ravioli.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Karmazim

Existem pessoas que passam por sua vida e deixam lembranças que não se apagam mais, ou pelo menos você gostaria que isso acontecesse, mas como estou cismado com a minha memória, toda vez que me lembro de alguém que não quero esquecer, coloco seu nome na lista do meu blog. O Karmazim foi um deles. Era um francês muito boa gente e que tinha como principal característica o seu bom humor. Ficávamos horas conversando sem perceber o tempo passar. Ele era uma pessoa com histórias muito interessantes, pois tinha lutado na segunda guerra na Resistência Francesa. Eu o conheci em 1974 quando entrei na Mecânica Pesada e ele foi um dos seus fundadores, junto com o Chu, Chouilan, Pavilak e outros importados diretamente da França, assim que a empresa foi inaugurada aqui no Brasil.

Não me lembro de tê-lo visto aborrecido a não ser no dia do leilão do Novo Horizonte. Na primeira vez que veio a Corumbá, veio junto com a filha Kiki e a Vicky, irmã de D.Virginia, tão ou mais simpática que ela, e um dos programas foi ir a um leilão de gado de corte que ficava no início do pantanal. Na hora de dividirmos o pessoal, pois não cabiam todos em um só carro, ele foi com o Chu em uma pickup pampa e o resto do pessoal comigo. O Karmazim não chegava a ser gordo, estava assim para o "forte", mas perto do Chu que era muito magro podíamos considerá-lo "bem forte". Na saída eu me lembro que ele já mostrou uma pequena preocupação pelo almoço, se não precisava levar alguma coisa para comer no caminho. Tranqüilizamos o "gordinho" explicando que era uma viagem de umas duas horas e o almoço seria no próprio leilão. O Chu, que é louco por pescaria, na saída resolveu pegar seus apetrechos de pesca e nos mandou sair na frente. Eram 8:00 hs da manhã. Chegamos ao leilão às 10 e fomos ver o gado. Andamos por cima de todas as baias, tinha umas passarelas próprias para isso e quando estava chegando a hora do almoço fomos para o tatersal e nos acomodamos, guardando lugar para os dois. Deviam estar chegando. Serviram o almoço, e nada dos homens. Retiraram os pratos e veio a sobremesa. Avisei o organizador que estava com visitas atrasadas e ele me tranquilizou que tinha todo o pessoal dele para almoçar ainda. Eles comeriam junto com os empregados, mas fome não passariam. Começou o leilão e nada ainda. Fiquei na espera, um olho no gado e outro em quem chegava. Lá pelas quatro da tarde, já no fim do leilão, chegam os dois. Quando fui cumprimentá-los o Karmazim, meio bravo de fome, me explicou o motivo do atraso. "Esse Chu é um tarado por pesca. Parou em todas as poças de água da estrada dizendo que ali tinha peixes. Não pegamos nada e perdemos o almoço. Por isso queria trazer algo para comer". A estrada que ia de Corumbá ao leilão foi transformada hoje em estrada parque pois atravessa uns 50 corichos, ou riachos como gostam os paulistas. O Chu respondeu que só queria garantir o almoço, como se alguém fosse fritar os peixes para ele no leilão.

Numa segunda vez, veio com o Chu, que já não trabalhava mais com a gente, para irmos para Piratininga. Chegaram de avião em Campo Grande e de lá para cá em uma van alugada. Era uma turma e muito animada, pois estavam com eles a Maria Tereza com o marido Carlão e a filha Diana, a Michelle, filha do Karmazim com o marido Nônô e a filha Giselle. Fiquei sabendo das discussões da Maria Tereza com sua filha logo na chegada. Na frente do aeroporto tem umas esculturas gigantes de pássaros do pantanal e a Maria Tereza quando viu quis chamar a todos para ver "que linda e bem feita aquelas garças" e fez isso aos gritos. A filha chamou a atenção dela e em sua euforia respondeu:
- Larga de ser chata e deixe eu externar meu contentamento, Diana.
- Pode externar Mamãe, também estou contente e mais ainda de ver sua alegria. A vergonha não é disso, mas de ver que você não diferencia uma garça de um tuiuiú.
É mole?
Quando chegaram, estávamos com tudo preparado, uma garrafa de 5 litros de pinga da minha reserva especial que recebo do pessoal de Piracicaba e que é envelhecida em meu tonel de carvalho que ganhei do sogro do meu filho Guilherme e duas garrafas de wisky Johnny Walker, rótulo azul. Queria agradar aos meus amigos. Passamos uns cinco dias muito agradáveis, secamos a pinga e praticamente só experimentamos o rótulo azul, eles eram profundos conhecedores de cachaça.

Quando eles foram embora o Karmazim me emocionou. Meu filho caçula, o Guilherme, tem uma coleção de facas e ele ficou sabendo disso. No último dia que passamos juntos na fazenda, ele contou uma de suas passagens na segunda guerra. Com um canivete teve que silenciar um alemão para invadirem um depósito de munição. Acabando o relato ele mostrou o canivete usado, a coisa mais linda, cabo de osso, coisa muito fina mesmo e disse que tinha tornado o seu amuleto e o acompanhado a vida toda. Como ele estava velho queria que aquilo continuasse nas mãos de algum amigo, mas que desse valor a esse tipo de arma e que conhecesse sua história. Quando completou que tinha encontrado essa pessoa no meu filho ficamos todos muito emocionados. É a principal peça da coleção do Guilherme e ele, como eu, temos muito orgulho dela. Foi a ultima vez que vi o Karmazim, ele veio a falecer alguns anos depois.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Casa Grande & Senzala.

Piracicaba passou a fazer parte de nossas vidas quando Beto começou a fazer agronomia na ESALQ. É uma faculdade muito ajeitada onde os alunos desenvolvem um amor a escola que beira a um culto. O Esalqueano é igual ao Corintiano ou Flamenguista. Com a entrada do Guilherme, aí até nós começamos a ficar fanáticos. Eles moravam em república com mais 8 ou 10 companheiros e de todos os anos. Isso já era feito para perpetuar a mesma e sempre entrava os bichos do primeiro ano para substituir os formandos que estavam saindo.
As histórias eram inúmeras e uma mais engraçada do que a outra. Teve uma vez que estavam na boate e um desses bad boys tentou tomar a namorada de um deles e não sabia que estavam de lote, brigaram e surraram o cara. No dia seguinte chegam uns três carros na república e descem um monte de marmanjos, cada um mais sarado que o outro, e um deles de cara inchada e pela janela reconheceram a peça. Telefonaram para outra república pedindo reforços pois os caras eram em 8 e eles só dez. Como cada um dos deles valia por dois dos nossos, na boate já precisou se quatro para dar em um, a proporção estava desleal. Responderam que já estavam indo. Para esperar a chegada do reforço, foram tentar enrolar o pessoal para não deixar que eles depredassem a casa. Passaram-se horas e nada do socorro chegar e eles conseguiram contornar a situação, ainda que com certa humilhação, do tipo "num bate na gente não, ontem estava todo mundo meio alegrinho. Desculpe aí vai. Aqui só tem sangue bom, desperdício derramá-los. Esses roxos na cara dele saem logo e a mordida na bochecha nem cortou. Tem um remédio que se chama arnica que é muito bom. Eu tenho aí e vou emprestar para ele." Depois que os caras se mandaram e eles já se sentindo aliviados, humilhados e putos com os companheiros chamados, chegam os mesmos em 8 carros, todos freiando e derrapando em frente da república e descem uns 10 homens de dentro deles. Ninguém acreditava no que estava vendo e passou a raiva na hora. Todos fantasiados de super heróis, homem aranha, batman, super homem, ninja tinham uns três. Os putos se atrasaram para fazer graça.

Só tinha uma empregada, a Nê, abreviação de Nega, para tomar conta daquele bando de homem. Tinha dois olhos e literalmente um na brasa e outro no peixe. Nunca vi nada mais feia e justificaram que tinha que ser assim pois todas as bonitinhas que apareceram foram atropeladas até pedirem contas. Lavava a roupa, limpava a casa e cozinhava, tá certo que lavava mal e uma vez por semana, limpava pior ainda e uma vez por mês e cozinhava pessimamente, mas pelo menos todos os dias. Acontecia do nego sair de casa, pegar uma garoa e começar a espumar. A Nê tinha esquecido de enxaguar a camisa. Tinha uma aranha moradora em cima da geladeira, e o pessoal com uma caneta hidrográfica, escreveu na parede "olha Nê ,tô aqui, cuida d'eu".

Quando o Beto entrou na faculdade, o primeiro lugar que ele foi morar, foi com o Batô, um amigo da Laura, em uma república que era um espetáculo e numa CASA GRANDE, que era a antiga residência dos pais de um dos estudantes e que tinham se mudado de cidade e eram produtores de cana e muito abonados, era um palacete. No ano seguinte, quando o Guilherme entrou na mesma faculdade, o Beto mudou e foram juntos para uma nova república que se chamava SENZALA, e na nossa primeira visita a ela, achamos o nome muito apropriado. Um dia eles vão escrever um livro sobre esses tempos e se chamará "Casa Grande & Senzala", título muito apropriado que eles se apropriarão do mesmo. O Gilberto Freyre não vai ligar. Na primeira visita aos dois juntos que conhecemos a Senzala e a Nê. Beá chorou uns 100 km na volta e de quando em quando murmurava que não tinha criado os filhos para viver "naquilo". Eu tentava consolá-la com um "concordo plenamente, você viu o fogão?, nunca passou bombril nem por perto dele", aí ela replicava, "e o sofá, meu Deus!".
 A casa da república tinha sido uma escola infantil, dessas que o banheiro tem dois vasos juntos. Quando fui usá-lo e vi aquilo, perguntei ao pessoal porque eles não tinham mandado retirar um. Para quem só faz coco de porta trancada e não pode ter ninguém perto, nem do lado de fora, a resposta foi inesperada: 
"E aí tio, quando bater a vontade em dois ao mesmo tempo? E depois a gente troca idéias durante". Parece que a coisa estava tão banalizada que o nego ia cagar e chamava o companheiro para ir junto e aproveitar para continuar o papo. Deviam ser todos uns nariz entupidos. 
Todo ano tinha o churrasco dos pais e nunca perdemos nenhum. Era a ocasião que eles "faxinavam" a casa para não traumatizar muito as mães, mas sem sucesso.
Guilherme no seu segundo ano e na nossa terceira visita, ficava em um quarto junto com um bicho, calouro, e em um beliche. Fui conhecer seu quarto e vi a cama de baixo bem arrumadinha e a de cima uma bagunça só, cheia de roupas de todos os tipos, as sujas, as lavadas pela Nê e sem passar e as mal passadas. Quando perguntei a ele qual era sua cama ele apontou a de baixo. Quando perguntei porque não colocava o bicho para arrumar a dele e tirar aquela roupa toda de cima ele começou a rir e falou:

- E vou enfiar a minha roupa aonde?

Só balbuciei um "como?" e ele completou:

- Pô pai, essa roupa é minha. Ele dorme no chão.

Mandei ele trancar a porta e voltamos para a sala. Na mesma tinha um colchão no chão, e eu não sabia se era um capacho gigante pela sujeira, ou um sofá, ou sei lá o que. O que não se sabe se pergunta, já dizia o Irmão Constantino do Arquidiocesano:
- O que é isso?

- Ué, um colchão.

- Certo, estou vendo, mas com que finalidade?

- Ué, o que se faz em um colchão?

Comecei a ficar irritado com as respostas bestas, e falei:

- Nem desconfio quando ele esta na sala e com uma mesa de centro em cima.

- Pô pai é a cama de um outro bicho. A mesa de centro ele põe nos pés e a perna entra por baixo.

Prometi a mim mesmo, a partir desse momento, a não perguntar mais nada, apesar de achar que nada naquela casa de dois vasos no mesmo banheiro e colchão na sala poderia me surpreender. 
Na saída encontramos um sofá na calçada e Beá que não compartilhou a promessa comigo perguntou o que aquilo estava fazendo na rua e foi o Beto que respondeu:

- Tiramos da sala para acomodar o bicho novo que entrou, o do colchão-carpete, (falou olhando para mim) e como não tinha onde pôr veio parar aqui.

- Mas não podem roubar? 

- Mãe, ele já andou aqui na rua por um mês. Colocamos para os lixeiros levarem ou alguém roubar e ficou aí até recebermos uma notificação da prefeitura. 

- Mas vocês usam essa porcaria?, Bea insistiu.

- Tomamos tereré toda a tarde aí.

- Mas e a chuva, filho?

- Pô mãe, não tomamos tereré na chuva.

Ai quebrei a promessa e falei:

- Mas não molha a merda do sofá?

- Molha, lógico, mas aí a gente forra ele com o colchão do bicho.

Demos um beijo em cada um e pegamos a estrada. Pensei que Bea ia chorar por 200 km, mas no 100 ela já tinha se recuperado.
 Mas não foi fácil.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Viagem a Belo Horizonte

Todas às vezes que pego uma estrada eu me lembro daquela viagem. Teve momentos muito bons e outros terríveis, mas todos inesquecíveis. Era julho de 1974, em plena copa do mundo, era uma sexta feira e o Brasil enfrentava a Argentina no dia seguinte. Minha filha estava com alguns meses e Tontonio tinha levado Lenir para São Paulo para tratamento, pois ela tinha perdido o primeiro filho logo que nasceu. Minha irmã caçula Maria Lucia, então com 14 anos, estava em uma excursão com as coleguinhas do colégio e Mena minha cunhada, fazia cursinho em São Paulo e morava comigo. Esse era o panorama do momento. Para nos distrairmos fomos ao Play Center, parque de diversões recém inaugurado, e quando voltamos para casa, por volta da uma da madrugada, na porta de meu quarto tinha um bilhete da Mena, que ficou cuidando da Laura, dizendo para acordá-la que tinha recado importante para nós. Assim o fizemos e ficamos sabendo que mamãe tinha ligado avisando que Maria Lucia tinha empacado em Belo Horizonte com saudades de casa e era para nós irmos pega-lá. Eu tinha um Maveric e resolvemos sair direto. Não estávamos com sono e se deitássemos naquela hora perderíamos o jogo, e Brasil e Argentina em copa do mundo era impensável.
Estava um frio absurdo e o carro com o sistema de aquecimento ou quebrado ou nunca existiu mesmo, deixava a temperatura interna aparente abaixo de zero e me lembro da neblina congelar no para brisa e termos que parar várias vezes para abastecer o reservatório de água. Se ligasse o limpador depois de congelado podia estragar a borracha. Dirigia com uma mão e sentado sobre a outra e ia revezando. No começo até que estava bom e fomos conversando. Quando chegou o sono é que foi tora. Veio para os dois ao mesmo tempo e não tinha onde parar. Eu dirigindo, dormia de olhos abertos e me sentia no Play Center no trompa trompa e queria encontrar alguém para bater de frente e ver a cara do motorista. Quando acordava com o barulho de caminhão cruzando com a gente que via o perigo pelo qual tínhamos passados. Acordava Tontonio e passava o volante para ele. Deitava e dormia profundamente quando sentia o nariz escorrendo e o ranho congelando. Acordava e achava que estava com hipotermia. Esfregava as mãos, limpava o nariz e desmaiava de novo até que o Tontonio parava e pedia para pegar um pouco, pois ele não agüentava mais. Achava que tinha passado horas e eu já estava recuperado e quando olhava o relógio tinha passado 20, 30 minutos. Pegamos um guarda rodoviário no acostamento e pensamos em entregar o carro para ele dirigir. O puto não tinha carteira. Devia ser o único guarda rodoviário sem carteira do país. Perguntamos se ele não sabia dirigir sem carteira mesmo e desistimos com a resposta de "esse tipo de carro não e eu sou guarda rodoviário, como vou dirigir sem carteira" . Pensei em perguntar que tipo de carro ele sabia mas desisti. Devia ter perguntado pois ia servir para espantar o sono. Com ele conversando com Tontonio consegui dormir mais cumprido e quando peguei fui até BH.
Fomos direto para o hotel, ia começar o jogo, ligamos para Maria Lucia dizendo que já estávamos lá e mentimos que íamos dormir um pouco. A mentira virou verdade e desmaiamos enquanto o Brasil ganhava da Argentina em plena copa do mundo. Acordamos já na hora da janta e resolvemos levar Maria Lucia para comer conosco. No fim foi todo pessoal que cuidou dela depois que a excursão continuou a viagem. Gente muito fina e nos levaram para conhecer a ladeira do amendoim, onde os carros subiam sozinhos. Eu já era engenheiro e conhecia a lei de Newton, e percebi que era ilusão de ótica mas Tontonio começou a acreditar no que nossos anfitriões estavam falando. Você parava o carro e ele ia subindo e diziam que eram forças magnéticas, igual a um imã gigantesco que puxava o carro para cima. Começou uma discussão e o Tontonio começou a me chamar de sabichão, que eu não acreditava nos fatos, estava ali o carro subindo, estava ali o cara explicando do imã e eu cabeça dura discutindo, pior que São Tomé, pois esse bastava ver para crer e eu nem isso. Fui ficando nervoso até que mandei os elementos femininos se afastarem e irem para o carro. Ficou o Tontonio, o mineiro mentiroso e eu. Por sorte eu estava com muita vontade de urinar e assim o fiz. Quando a urina começou a subir eu perguntei a ele se o efeito do imã também atuava em urinas o que o deixou sem resposta. O Tontonio ainda me criticou dizendo que era falta de educação não acreditar nas mentiras do anfitrião e isso na frente dele. Na viagem discutimos para definir o que foi pior, urinar na frente do homem, desmenti-lo ou chamá-lo de mentiroso. No dia seguinte voltamos os três para São Paulo. Acho que foi a única vez que viajamos juntos e sozinhos. O Maveric tinha aquele banco inteiriço na frente e viemos todos neles. A caçulinha no meio de nós dois. Bem dormidos viemos tranqüilos e pensando que se o sono apertasse entregaríamos o carro para ela que já dirigia super bem, apesar de mulher.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Visita dos amigos do Beto

Beto fez o terceiro científico no Indac, junto com o cursinho. O Indac é, ou era, não sei se existe ainda, um colégio que não exige muito de seus alunos. Havia alunos que faziam o terceiro ano lá para ter mais tempo para se dedicar ao cursinho e tinha aqueles que faziam os três anos lá, para terem mais tempo para se dedicar a porra nenhuma. Numa de nossas viagens para Santa Anatalia, o Beto levou dois amigos de lá para conhecerem o pantanal. Não lembro os nomes mas um usava brincos e o outro tinha um cabelo que já o apelidamos de poodle. Ambos eram alunos do segundo grupo. Assim que fiquei com mais liberdade com eles, eram muito simpáticos, recomendei ao de brinquinhos que os tirasse, pois os costumes do pessoal que vivia no pantanal eram meio diferentes. Ele deu risadas e achou que eu estava de gozação com ele. Não insisti. Na fazenda foram o centro das atenções um tirava sarro da cara do outro o tempo todo. Temos uns coqueiros no pátio da fazenda que produzem uns frutos deliciosos. Quando ofereceram para o poodle se ele não queria que o praieiro abrisse um para ele, para surpresa de todos, ele respondeu que nunca tinha comido. Questionado que existia todos os subprodutos como leite de coco e coco ralado, ele veio com a pérola que o coco que ele conhecia era diferente. Era redondo e tinha uma casca muito dura. Demos risadas e pedi ao praieiro que descascasse um para ele, o que o deixou muito surpreso ao ver que era "só cabelo". O de brinquinhos, para tirar sarro dele, o pegou pela mão e o levou até o galinheiro e mostrou as galinhas dizendo "isso que faz có có é o frango e é também igual aqueles do supermercado. Isso aí por fora é só cabelos também, que neste caso chamam de penas, pois para ficar daquele jeito que você conhece e vê lá nas gôndolas dos supermercados, tem que arrancar os cabelos e como dói muito o pessoal fica com pena, daí o nome, entendeu?". Eu ia corrigir que frango não é galinha mas ia confundir por demais a cabeça do poodle. Aquela explicação já tinha ampliado enormemente os seus conhecimentos. Mas a noite teríamos o baile e foi ali o grande momento. Lá pelas tantas, com o arrasta pé comendo no centro, duro de gente numa proporção meio desleal, algo assim 100 homens para 20 mulheres, nessas 20 já incluindo a minha que eu não deixava dançar com puto nenhum, aparece o Brinquinho sem os brincos. Quando vi perguntei a ele se os tinha perdido. Ele colocou a mão no bolso e os mostrou para mim dizendo que só os colocaria no final do baile, pois já tinha sido tirado para dançar umas dez vezes e já não agüentava mais dar tábua nos peões. Então expliquei a ele que eles não tinham preconceitos em fazer sexo com gay e isso não depreciava o ativo. A falta de mulher por lá facilitava o aparecimento dos passivos e eram muito bem recebidos. Acharam nos brincos uma forma de você demonstrar suas opções. Isso o deixou todo arrepiado, acho e espero que tenha sido de medo, pois ele tinha tirado os brincos.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Padre Ernesto

Padre Ernesto foi meu professor de latim e de canto, é, canto de cantar. Na minha época tinha essas duas coisas e a explicação para o Latim é que apesar de ser uma língua morta tínhamos que conhecer pois era mãe do Português. A piada da época e que ele não gostava é que devia chamar Dona Maria e não Latim. Já o canto ninguém explicava o motivo, mas serviu para muita gente não se meter a cantar. Acho que dos Marinhos não prestou nenhum pra coisa. No primeiro dia de aula você devia recitar a escala musical para o padre Ernesto e ele definia se você seria o grave ou o agudo ou o barítono ou coisa parecida e assim por diante na formação do coral da escola. Tanto eu quando o Tontonio, não acabamos de cantar a escala, começamos no dó e no mi, ele sem dó mandou que parássemos e definiu que só fingiríamos, gesticulando com a boca, mas não emitiríamos nem um som ou acabaríamos com o coral da escola. Minha possível carreira de cantor acabou ali, naquele momento. Para fazer serenata para as meninas nos meus 15, 16 anos tinha que encher a cara de álcool para ter coragem. Se fosse uma coisa constante, correria o risco de me tornar um alcoólatra. Quando ele mandava eu declinar um verbo da primeira conjugação e eu errava na pronuncia ele já me executava pois achava que estava com graça. Nas aulas de Latim era quando eu mais ia parar na diretoria. Teve uma vez que estava procurando a borracha na minha pasta durante a aula e ele perguntou se eu estava procurando o meu batom. Respondi que não, e completei baixinho que sabia que não estava lá porque eu tinha emprestado à ele que não tinha o costume de devolver. Ele escutou o que eu disse ou o riso do pessoal em volta e já fui para a diretoria. O padre Miguel quando me via só perguntava se era na aula de Latim ou de Canto, pois já sabia que era o padre Ernesto que tinha me executado. Mas depois ficamos muito amigos. Ele é uma pessoa admirável que tem trabalhado muito por Corumbá. Não conseguiu ensinar nem canto nem latim para mim, em compensação criou a cidade Dom Bosco que é a maior obra de apoio ao menor carente do estado. Criou-a inteira, não só a parte material, e quem conhece sabe ser uma coisa enorme com salas de aula, campo de esportes, anfiteatro, ginásio coberto, abrigando todas as crianças carentes, proporcionando alimento completo: corpo, mente e espírito, transformando o padre Ernesto no maior benemérito desta cidade. Agora, como professor de Latim, tenho que falar, "não foi fácil".

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Nhato

Nhato é como chamam esses leitõezinhos aqui na região. Era o apelido de um empregado meu, desses que você nem sabe o nome mais. Trabalhavam ele e a esposa na fazenda Piratininga, quando nasceu o primeiro filho dos dois. Ela tinha duas meninas com outro homem. 
O Guri chamava Paulinho e como a gravidez foi meio complicada a mãe fez promessa que só cortaria o cabelo do menino quando ele fizesse 7 anos. Com 3 já era a coisa mais esquisita pois ele era mulato, pai branco e mãe negra e puxou o cabelo desta última. Era muito pixaim e como nunca cortou, era uma miniatura desses Black Power. O gurizinho era muito bonitinho mas aquele cabelo era de arrepiar ou, melhor dizendo, muito arrepiado. O menino tinha uma mania engraçada e demorei para descobrir o que acontecia, mas todas às vezes que eu chegava na casa dele, o comedor da fazenda era junto, ele grudava no seu saquinho com as duas mãos e saía correndo. Na quarta ou quinta vez que eu percebi que esse gesto era sempre o mesmo, peguei o menino antes dele se mandar. Quase morreu de susto e gritava que ele ia ser bonzinho e que eu não devia capar ele. Tudo isso falado por uma criança chorando, eu não conseguia entender nada, até que apareceu a Dilene, sua mãe. Quando perguntei que merda o gurizinho estava falando e porque ficava apavorado toda vez que me via que ela me contou a história. Como ele era muito danado, o pai falava que se ele não se comportasse, ele ia chamar o patrão, eu mesmo, e mandar cortar suas pelotas. Pronto, terrorismo feito e o guri acreditou piamente. Enquanto a mãe me contava ele foi de acalmando e no fim eu falei a ele que iria era capar o pai dele se ele zangasse ou quisesse bater no Paulinho. Feitiço virou contra o feiticeiro e toda vez que o pai queria puteá-lo, ele punha as duas mãos na cintura e falava:
- Você esqueceu que sou amigo do homem. Quer perder as pelotas, quer?
O guri que já era terrível ficou impossível e com sete anos deu um tiro na bunda do primo. A sorte que foi de 22 e com bala velha. Hoje tá homem, mais de 20 anos e ainda brinca com o pai, que é meu chapa e que ninguém pode mexer com ele.
O tempo passa.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Alo pantanal

Nós temos um programa de rádio aqui em Corumbá que é muito conhecido por todos que vivem ou tem fazenda no pantanal. É o "Alô Pantanal". É muito útil e para muitos a única forma de se comunicar, unilateralmente, com a fazenda. É por onde os patrões avisam os empregados que estão chegando e que eles tem que preparar um determinado gado para trabalhar, ou que faleceu um parente próximo, é também quando os parentes mandam cumprimentos pelo aniversário ou aviso que nasceu filho. É tanta coisa que diariamente tem uma hora de programa e todinha tomada com mensagens do pessoal da cidade para o da fazenda. É na hora do almoço e todos da fazenda escutam. Nós que falamos por rádio SSB, também usamos o "Alô Pantanal", quando queremos falar fora da hora marcada, pedindo que eles entrem em radio com a gente, pois eles podem nos chamar a qualquer hora, já daqui para lá não, pois a energia é no grupo gerador motor-diesel que não fica ligado o dia todo. Mas esse programa tem proporcionado alguns lances muito engraçados.
Teve um que a mulher, na cidade, mandou para o marido, na fazenda e foi exatamente assim, só com alguns nomes omitidos, apesar que o mesmo foi dito através de um meio muito mais público do que este modesto blog, e o padrão era sempre o mesmo e assim: 
"Alo seu Sebastião da fazenda TAL, sua mulher, Modestina manda avisar que é pra você vir pra cidade. Ela já saiu do hospital e seu patrão, o Dr FULANO, não quis dar dinheiro para ela que já esta até passando fome. Se continuar assim ela vai ter que voltar para o hospital, pois lá pelo menos ela toma soro."
A turma racha de rir principalmente porque conhece todos os personagens. Outro lance muito engraçado aconteceu com meu concunhado Cauto, casado com a Mena, irmã de Beá. Tem uma fazenda que se chama Berenice e fica no caminho para Santa Anatalia. O caminhão da fazenda, dirigido pelo Vicente deu uma atolada lá e acabou por queimar a embreagem. Pelo rádio da fazenda o motorista contatou o Cauto para mandar um Mecânico com um disco do Mercedes para resolver o problema e avisar pelo Alo Pantanal quando que o mesmo chegaria. Tudo resolvido o Cauto recebe um telefonema muito esquisito e, segundo ele, foi assim:

- Seu Cauto, aqui é o Clemente e o senhor não podia ter feito isso comigo.

- Clemente, Clemente? Rapaz, não estou lembrado de nenhum Clemente. Mas o que houve?

O cara estava realmente injuriado e falou:
- Por isso mesmo que tô te ligando. O senhor não podia colocar aquele Alo Pantanal pro Seu Vicente daquele jeito "Alo seu Vicente, que está aí atolado na Berenice, o Mecânico para te tirar daí já saiu daqui de Corumbá."

- Mas e daí companheiro, não estou entendendo porque o senhor ta tão chateado.

- É que minha mulher chama Berenice e tá todo mundo gozando da minha cara. Isso num é certo não.

É que o "Alo" é pago por palavra e o Cauto quis economizar o Fazenda antes do nome, afinal de contas ele não conhecia nenhuma Berenice. 
Igual a essas um sem numero. Fica para a próxima.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Os burricos da Apae

Já falei que meu irmão não entende e não gosta de fazenda. Vê a coiseira toda como um negócio e não adianta dar uma de Luis Guilherme Lacerda com ele, que vive falando que "trabalhamos em um ambiente maravilhoso, andando a cavalo por esse pantanal onde pessoas pagam para isso, respirando esse ar que mais puro não existe, convivendo com esses animais silvestres lindos e maravilhosos, e ainda querer ganhar dinheiro com tudo isso já é demais". Há muito tempo atrás, antes de eu saber o quanto ele entendia de pecuária, fomos a um leilão no sindicato rural de Corumbá. Enquanto eu participava ativamente do leilão de gado de corte ele ficou batendo papo com todo mundo e só olhava quando o leiloeiro falava "...e a compradora foi a fazenda Angico". Olhava e sorria para mim. Quando acabou a primeira parte e começou o leilão de eqüinos, resolvi dar uma esticada de pernas e o deixei sozinho na mesa. Fui até a porta do tatersal de modo a ver os animais mas sem poder participar dos lances. O primeiro lote foi uma doação que fizeram para a APAE e era de um casal de burricos. Igual aquele que Jesus entrou em Jerusalém. Não tem coisa mais feia e encardida que esse bicho. São muito pequenos com umas orelhas desproporcionais, que nem os coelhos, uma cabeça muito grande para o tamanho do corpo, e o principal, não serve para absolutamente nada em uma fazenda de gado de corte, a não ser dar raiva para capataz pois não tem cerca que ele não vare. Existe para produzir a mula ou o burro, cruzando ele com a égua, e isso é foda, literalmente. Primeiro pelo tamanho, você tem que cavar um buraco para ele ter altura e alcançar a égua. Depois ele é masoquista e você tem que surrá-lo para cobrir a bicha que está num buraco e esperando aquela coisa horrível trepar nela. A conclusão é que não tem bicho mais inútil. Fiquei olhando achando até meio sacanagem alguém fazer uma doação desse tipo. Se dessem pra mim um trem daqueles eu agradeceria e não aceitaria nem que fossem acompanhados de um troco. Me admirei quando alguém aceitou abrir o leilão pelo valor proposto pelo leiloeiro e o desenrolar foi mais ou menos assim:


- Duzentos, duzentos, duzentos, quero mais vinte, mais vinte, vamos lá pessoal, é para a APAE, só mais vinte...


E a coisa ficou por bem uns 3 minutos naqueles mais vinte que não vinha, Ai passou para mais dez, mais dez, só mais dez, que também não veio. Finalmente ele bateu o martelo e falou:


- A APAE agradece a colaboração e a compradora foi a Fazenda Angico.
 Olhei pro leiloeiro com a expressão de "eu não comprei essas merdas", quando ele apontou, com os olhos, para o meu irmão. Fui até a mesa e ele me falou:


- Você saiu e se não fosse eu íamos perder de comprar esses pôneis para as crianças. E comprei barato.


- Pônei Zé? (eu o chamo de Zé quando estamos brigando). Burrico!


- Porra meu, você comprou um monte de gado e fiquei quieto. Eu compro dois pôneis e você me chama de burro?
 Não Zé, burrico foi o que você comprou. Não são pôneis. O último cara que montou nisso foi Jesus. 


Aí demos risadas. O trem deu ódio para gente até o dia que conseguimos passá-los para a frente. Trocamos o casal mais uma cria que nasceu na fazenda por uma vaca leiteira e a vaca valia os 200. Papai já dizia que eu tinha muita sorte pois nasci empelicado e de tóba pra lua e isso vivia se comprovando, até no meu dia a dia.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Chu II

Em 1984, depois de formado em engenharia Mecânica pela MAUA e civil pela UNITAU e terminar meu mestrado em estruturas no ITA, larguei tudo e vim para Corumbá. Alguns anos depois recebi a visita do Chu, meu primeiro chefe na Mecânica Pesada. Veio para pescar pois estava aposentado. Na última noite aqui fiz um jantar em casa para ele e ficamos conversando das mudanças em nossas vidas e lembrando dos tempos de Mecânica Pesada. Eram recentes, mas já eram passado, e já o tratávamos como velhos tempos. Hoje vejo o que são velhos tempos.
 Nessa conversa ele expressou a vontade de morar em uma cidade que tivesse um rio e ele pudesse pescar sempre e foi aí que tive a idéia:

- Vem para cá Chu. Trabalhamos juntos novamente. Não posso pagar muito bem em dinheiro, mas te ofereço uma casa para morar, um salário que não vai chegar nem perto da metade do que você ganhava na Mecânica, mas um rio espetacular para você pescar sempre.
Como ele tinha a aposentadoria dele, a casa era um sobradinho ajeitado, o salário era complemento da aposentadoria e o rio Paraguai era seu sonho de aposentadoria, para minha alegria e de toda minha família, ele topou.
 Trabalhamos juntos por mais de cinco anos e teve uma época em que passei a diretoria da empresa de agropecuária para ele. Era um choque de idéias muito grande, ele com os empreiteiros. Se para mim com 34 anos foi difícil a adaptação imaginem para ele com quase 60 ou talvez mais. Houveram lances inesquecíveis, como o encerramento do contrato do Clarindo, um empreiteiro de cercas. O homem reclamava que não tinha sobrado dinheiro nenhum e o Chu, penalizado com o mesmo, começou a especular onde ele tinha errado, pois o valor pago era por poste e outros empreiteiros faziam pelo mesmo preço e sempre tinham um saldo a receber no final. Durante a conversa foi descobrindo que o Clarindo fez uma série de serviços que não estavam no contrato, como limpado um piquete da sede enquanto esperava o trator ficar pronto e poder levá-lo até o acampamento e teríamos que pagar por isso. Carneou uma vaca para o capataz e salgou a carne e perdeu um dia de serviço. A medida que ele ia falando o Chu ia anotando e no final fez um aditivo com esses extras e acabou sobrando um bom dinheiro para o Clarindo. Quando foi para assinar o recibo e pegar o dinheiro que tinha sobrado por exclusiva competência do Chu, reclamou que faltava uma camisa que ele tinha rasgado fazendo o serviço e que a firma tinha que pagar. Em dinheiro de hoje, os adicionais deviam atingir uns dois mil reais e uma camisa desses caras, comprado na feirinha boliviana não devia chegar a R$ 20,00.
 O tempo gasto com o acerto do aditivo foi de uns 20 minutos, não mais, e a explicação do Chu que camisa era instrumento de trabalho e portanto por conta do empreiteiro levou uns 40. Fiquei sabendo de toda história pela Beá, que tinha sua sala ao lado da do Chu e escutou todo o acerto. Quando encontrei com o Clarindo e perguntei quando ia de volta para a fazenda ele respondeu:

- Seu Tadeu, não dá para trabalhar com esse japonês que o senhor contratou. O homem é muito pão duro. Rasguei minha camisa no serviço e ele não quis me dar outra e eu nem fazia questão que fosse nova. 
Como conhecia toda a história falei que o Chu era chinês e não japonês, que ele estava sendo injusto, que eu estava sabendo que se não fosse pelo Chu ele teria que vender as calças para pagar a firma e ficaria não só de camisas rasgadas como sem calças também, pois não estava considerando os extras e mais um monte.
Depois de tudo ele só me respondeu:

- Mas o que é uma camisa para a empresa.

Eu respondi:

- Não é a camisa Clarindo, são os princípios.

Parei a discussão e deixei ele ir embora quando ele disse:

- Só pedi a camisa, esse outro negócio é invenção dele.

Trabalhávamos muito, de sol a sol, de segunda a segunda. O Chu veio para se aposentar e descansar e acho que não conseguiu fazer mais que uma pescaria por ano. Quando comprávamos uma fazenda, ela já estava com a estrutura sucateada e tínhamos que refazer tudo, casa da sede, mangueiro, alojamento de peão e por aí afora. Quando fizemos o primeiro mangueiro, que é onde o gado é trabalhado, sentei com o Chu, especialista em turbinas hidráulicas e o Zé Mauro, que conhecia todos os mangueiros desse pantanal, com suas qualidades e defeitos e projetamos um. Com esses especialistas, quando terminamos o mesmo tinha o formato da caixa espiral de uma turbina e era otimizado para fazer o gado correr o mínimo. Todas as fazendas hoje tem um parecido e não tem quem vai conhecer e não pede uma planta. Ficou uma coisa muito chique.
Mas teve uma fazenda que compramos que estava em ordem com toda sua estrutura no mais perfeito estado. Foi a São Bento, do seu Zacarias. Acertamos um preço pelas terras e todos os bens fixos. O resto seria avaliado e o Chu o encarregado de fazer a lista dos bens que não estavam incluídos no primeiro negócio. Com a relação pronta, sentamos os três para discutir o que ficava e o que ia e os preços. O Chu com a lista na mão perguntou se o Zacarias não queria conferir de estava tudo lá ao que respondeu batendo dois dedos na testa, que sabia de tudo. O Chu começou a falar item por item e nós discutindo os preços. O que não tinha interesse para mim eu disponibilizava para ele levar. Apareceram coisas incríveis como um eixo com rodas de carro de boi, sem o resto, canga, cambão etc, que o Zacarias nem imaginava que existia e na hora ficava olhando para o nada e devia estar arrependido de ter batido com os dois dedos na cabeça. O Chu relacionou simplesmente tudo. 
Chu falava:

- Um sofá de três lugares revestidos de veludos da marca lafer.

Zacarias, olhando para mim dizia:

- R$ 500,00?

Eu respondia:

- Um novo?

Ele falava:

- Chu, põe R$ 250,00
. E seguíamos em frente.

Teve dois momentos críticos e seguidos. Quando o Chu relacionou os lustres eu reclamei que eram fixos, mas meu argumento ficou fragilizado pelo fato do Chu ser do meu lado e acabei pagando pelos mesmos. 
Em seguida o Chu falou:

- Uma imagem de São Bento de 80 cm de altura.

O Zacarias olhou para mim e deu uma risadinha e quando foi falar o preço eu não deixei e falei primeiro:

- Corumbá inteiro vai falar mal de nós seu Zacarias. Do senhor vão dizer que vendes até santo e de mim que compro até santo. Esse você ou leva ou deixa de presente.
 Ele tentou ainda aumentar o preço do sofá para contrabalançar mas não deixei. Aí já era uma questão de princípios.

Mas o Chu deixou saudades. Hoje ele mora perto de Taubaté e tem uma pousada muito legal em Gonçalves. Fez e deixou muitas coisas boa aqui e muitas saudades.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Aniversário de Santa Anatalia

Era um dos melhores programas que fazíamos, melhor até que viagem pras Oropas. Íamos todos os anos para o aniversário de Santa Anatalia, fazenda do meu sogro, comemorado junto com o dele, no dia 24 de julho. Mesmo depois que ele ficou doente e deixou de ir, comemoramos ainda por muito tempo. Só a medida que a rapaziada foi atingindo os 50 anos é que não fomos mais dando no couro. Era uma festa e tanto, ocasião em que levavam um padre e casavam todos que estavam juntados. Tinha missa, jogo de futebol e churrasco de chão e a noite aquele bailão.
Desde a época de recém casados e morando em Taubaté que íamos a essa festa. Uma das vezes fomos de carro até Campo Grande e meu sogro fretou um aviãozinho para nos levar de lá diretamente para a fazenda. Eu na frente com o piloto e Beá com Laura e Beto atrás. Acho que Daniel e Guilherme já estavam no bucho. Na decolagem a Laura com dois anos e meio começou a gritar que o avião ia cair, assustando a todos já achando que era alguma premonição. Como ela não parava de chorar Beá perguntou porque ela achava que o teco teco ia cair quando ela disse: "Alá!!..., papai não ta segurando no volante", e me apontou. Aí entendemos o motivo do susto pois o avião era de duplo comando e tinha manches dos dois lados. Como ela estava sentadinha atrás do piloto não via que ele estava com a mão no "volante" e achava que eu que estava "dirigindo" o avião. Beá teve que soltar o cinto dela e mostrar que o piloto era o outro e ele estava com a mão no volante.

Com o passar do tempo a festa foi ficando famosa e o grupo de visitantes foi aumentando. Chegou a ter mais de 50 pessoas saindo de Corumbá e lá juntavam com os vizinhos que deviam ser outro tanto.
 Quando já estava morando em Corumbá, íamos de carro com vários outros e sempre um caminhão Mercedes. Esse era o pau de arara. 
Tinha uma estrutura de ferro para permitir a cobertura com uma lona e era forrado com colchonetes e abrigava todas as crianças com algumas mães para por moral e evitar brigas. Quando ia rápido demorava 18 horas mas já fizemos em 36. Quem preparava a viagem, inclusive o caminhão, era o Cauto, gerente de Santa Anatalia e casado com Mena, a minha cunhada. Como ele também era piloto do avião BGZ e tinha algumas crianças muito pequenas, com menos de três anos que ele levava, escapava do pau de arara. A conclusão é que o caminhão ia com os pneus carecas e furando a viagem toda e a matula, quando tinha qualquer contra tempo e vivia tendo, acabava antes da viagem. Todas às vezes que isso acontecia o Pedro, irmão da Beá e o gordinho da turma, jurava que da próxima vez ele ficaria responsável pela matula, que fome ele não passaria nunca mais. Era sempre a mesma conversa. Quando reclamávamos ao Cauto ele dizia que nesse pantanal não tinha o que furar pneu e matula com Pedro na comitiva, podia levar o quanto fosse que sempre acabaria antes de chegarmos ao destino. Com o segundo argumento todos concordavam, mas quando perguntado do porque de dois estepes igualmente calvos ele falava que era excesso de zelo, mas todos sabiam qual o excesso dele, o bicho era muquirana mesmo.
Chegou uma época que resolveram viajar a noite. Apesar de ser julho estava muito calor e a noite a criançada acomodaria melhor. Ganharíamos, só na diminuição das paradas urinárias, umas duas horas. Como não conseguiria dormir de dia resolvi ir no pau de arara com toda a família e mais uns 30 neguinhos. Não tinha aprovado muito a idéia de sair de noite pois sabia que o motorista não dormiria durante o dia, mas me garantiram que ele seria liberado e apareceria no serviço só às 7 da noite, a hora programada da saída. Trabalhei o dia todo e na hora marcada fui para a casa de meu sogro, que era o local combinado para sair. Chegando lá não encontrei o caminhão. O Vicente, esse era o nome do motorista, estava arrumando a lona que não estava em ordem. Assim que ele chegou eu perguntei se ele tinha dormido e com a sua negativa resolvi ir na boleia do caminhão. Depois de 20 km de asfalto e ele cochilar e sair três vezes da estrada, pedi para ele parar que eu iria assumir o comando. Ele me perguntou ainda se eu já tinha dirigido algo parecido com aquilo e respondi que do jeito que ele estava indo eu não precisava saber nada para ir melhor.
 Assumi o comando do mercedão. Direção Mecânica, cambio seco, a pior coisa que já dirigi na vida, e isso a noite e eu sem dormir também, pois achei que ia nos colchonetes na carroceria e bem tranqüilo. Para completar não conhecia o caminho. As estradas do pantanal são bitolas formadas pelo tanto que os carros passam no mesmo local e acabam matando o pasto ficando na areia. Às vezes acontece de haver pequenos desvios que voltam ao mesmo lugar e as vezes são bifurcações que levam a lugares totalmente diferentes. Toda vez que entrava numa dessas e não encontrava a bitola na frente, cutucava o Vicente que abria um olho e falava, "toca em frente que está certo" ou mandava pegar para a esquerda ou direita e ir fora da bitola até voltar a encontrar a estrada que tinha deixado para trás. Nunca pensei que alguém pudesse conhecer esse pantanal desse tanto. Era uma coisa incrível, ele reconhecia cada moita, cada porteira e isso tudo a noite na mais completa escuridão. Era um fenômeno. Às vezes me respondia sem acordar. Por volta das quatro da manhã, eu já com muito sono, tentei acordá-lo e ele achando que eu estava perguntando do caminho, levantava, olhava para frente e falava "pode tocar que é isso mesmo" e voltava a dormir profundamente. Só às 7 da manhã com um solão brabo na cara do bicho que ele resolveu acordar. Perguntou se eu estava com sono e quando respondi "morrendo" ele disse " porque não me acordou?". Depois de mandá-lo tomar no rabo devidamente, passei o volante para ele e fui para a carroceria. Deitei no colo de D. Beá e acordei às 3 da tarde em Santa Anatalia. Foi uma das viagens mais rápidas que fizemos. Mas teve outras.




segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Irmão Ático

Irmão Ático foi meu professor de Português no Arquidiocesano e com o mestre Luiz do salesiano, foram os dois únicos professores que conseguiram prender minha atenção nas aulas. Era uma matéria que eu não gostava muito. Para falar a verdade, não gostava nem um pouquinho. Nunca fui bom em nada que exigisse memória, coisas que tinha que decorar. Gostava de matemática pois a única decoreba era a tabuada. O resto você conseguia deduzir tudo. Mas o Irmão Ático tinha a capacidade de prender sua atenção. Ele misturava as aulas com histórias e tinha uma regras lógicas que você decorava tudo meio sem querer. Na aula de gramática ele dava exemplos que você guardava a frase e o resto era dedução e uma das que me lembro era, "O sujeito roubou os objetos" e dela você já sabia quem era o sujeito e quem era o objeto. Tinha uns engraçadinhos que, quando perguntado quem era o sujeito da frase respondia que era fugitivo da justiça. Mas até essas brincadeiras ele usava nas aulas e dizia que mesmo fugitivo era determinado. Ai o engraçadinho completava que com isso ele não concordava, pois determinado era quem ficava atrás do sujeito até levá-lo preso. Mas nessas brincadeiras aprendi gramática, alguma coisa.

Mas o lance inesquecível do Irmão Ático foi quando ele passou uma redação que, com a nota dela, poderíamos substituir uma das notas do mês, logicamente a mais baixa e que premiaria as três melhores publicando no jornal dos salesianos. Era véspera dos dias das mães. Fiquei em terceiro e muito orgulhoso quando ele a leu para todos na classe e terminou dizendo que a classificação foi pela emoção que coloquei naquelas palavras. Era interno e estava longe da minha mãe pela primeira vez e talvez isso justificasse tanta emoção. O segundo lugar ficou para o Mario Baldini, que era o cobrão de Português e foi elogiado pelas concordâncias perfeitas, zero erros de Português, nenhuma repetição de palavras mostrando que conhecia todos os sinônimos da nossa língua. E o primeiro lugar, para surpresa de todos ficou com um cara meio apagado da turma, não ficava na fila da frente mas também não era nas últimas, Sergio de tal, vou poupar o sobrenome aqui, vai que o cara virou político e usem disso contra ele. O Ático leu sua redação com lágrimas nos olhos. Parou varias vezes para assoar o nariz. Quando acabou foi até ele e o abraçou emocionado. Nunca pensou que podia encontrar algo parecido entre seu alunos. 10 com louvor e ia ser capa do jornal. Emoção pura, concordância perfeita, coordenação de idéias ótimas, tinha enredo, começo, meio e o final, e que surpresa, ele não escreveu para a mãe dele e sim para nossa senhora, mãe de todos nós. Idéia magnífica, digna dos nossos gênios da literatura. Gastou 5 minutos na minha, 5 na do Baldini e o resto da aula na do Sergio, e nem achei o trem tão chique assim, muito rebuscada, cheia de palavras que eu nem sabia o significado, como sua "sapiência", que para mim, na época, era a ciência que estudava os sapos.

Uns 15 dias depois entra o Irmão Ático na aula e o mínimo que pode-se falar de seu estado era possesso. O bicho estava muito brabo mesmo, de um tanto que ele não conseguia falar e babava de raiva. No começo era uma coisa meio verde e chegamos a pensar que ele estava possuído e aquilo era o hectoplasma. Quando ele consegui falar começou a xingar a alguém, que achávamos se tratar de um ser imaginário e sem ninguém entender nada ainda, ele abriu um livro antigo e falou que ia ler algo para nós. Começou a leitura e todos perceberam que se tratava da redação do Sergio. Ipisis literis, como ele gostava de falar. Terminando, ele virou para o artista que estava branquinho e provavelmente todo cagado e falou:

- Vou te dar zero pelos seguintes motivos:
1) Você roubou o Olavo Bilac;
2) Você menosprezou a mim como professor, pois achou que eu não ia descobrir;
3) A pior de todas, você podia ter feito eu me sentir o pior dos professores. Imagine se não dou dez ao Olavo Bilac?
Quando a coisa estava na tensão máxima, o Geraldo, um Corumbaense muito do gozador e deveras corajoso, me vira para o Irmão Ático e pergunta:
- Mestre, uma pausa para esclarecimentos. Quem foi esse Olavo Quilate?
O velho ficou com aqueles olhos parados sem responder e só deu para escutar ele resmungando "eu devo ter jogado pedras na Cruz". Vindo de um Irmão Marista todos concluíram que, realmente, ele estava possuído.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Padre João

Padre João foi o melhor pároco dos últimos anos que veio para Corumbá. Era muito amigo de papai , ajudava mamãe no asilo, não só cuidando da parte espiritual dos velhinhos mas também da parte material do próprio prédio pois era pedreiro, eletricista e encanador. Sempre que mamãe fazia bacalhau convidava nós dois para almoçarmos com eles. Ficávamos conversando e papai gostava de contar piadas picantes para ele que, não só dava risadas como devolvia contando outras só de padres. Ele era muito divertido. Às vezes quando papai via que não ia sobrar bacalhau para ele comer na janta, falava:


- Padre João, pode comer a vontade que tem outra travessa lá na cozinha, mas cuidado que estou achando meio salgado e vai subir sua pressão. 


Teve uma vez que ele foi me visitar na Ema e assim que a secretária falou que ele estava na recepção coloquei todos que estavam em reunião na minha sala para fora e pedi que fizessem ele entrar. Ele chegou, se sentou e começou falando:

- Tadeu, posso te chamar assim não? Tenho percebido que o senhor não tem ido a missa aos domingos. Queria vê-lo lá pois a vida não é só trabalho, tem que ter tempo para tudo. 


Quando vi que a coisa ia se estender eu falei:


- Padre João, eu gosto muito do senhor e tenho o maior respeito pelo seu trabalho. Agora o senhor não veio aqui para me fazer um sermão particular e sei que, como eu, está cheio de coisas para fazer. Me diga o que posso fazer pelo senhor, que se estiver ao meu alcance vai ser com o maior prazer. 


Ele não se desconsertou e falou:


- Pois bem, estou precisando de umas vigas de madeiras para fazer um galpão lá na comunidade de São José. Se você pudesse me ajudar?


Como tinha muita intimidade com ele respondi:


- Façamos um acordo padre João. Eu faço o galpão todo e o senhor interfere por mim com o homem lá em cima por eu não ir a missa.


Ele se levantou, estendeu a mão para mim e falou:


- Negócio fechado. 


Não agüentei e comecei a dar risadas. Ele não se abalou e falou:


- Se continuar assim vou ter que vender lugar no céu como no passado. 


Tenho certeza que ele tinha autoridade para isso. Era um santo.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Droga de Memória

Tem coisas que estão na sua memória mas sem endereço. Aqueles lances de sei que conheço mas não sei de onde e nem de quando. Estava viajando de avião de Santiago para São Paulo na classe executiva, na America do Sul a diferença para classe turística não era mais de 30 dólares, e meu vôo fazia escala em Foz do Iguaçu. Estava deitado quando embarcou uma figura. Era mulato e estava todo de branco com aquelas camisas bordadas paraguaias, um chapéu de palha de abas largas e chinelos de franciscano. Parou ao meu lado e com um sorriso nos lábios fez sinal de cabeça dizendo que era meu companheiro de viagem, que sua poltrona ficava ao lado da minha. Um sujeito bem simpático e me levantei para ele passar devolvendo o sorriso. Ele parou e me estendeu a mão. Ao cumprimentá-lo lembrei que era um cantor e que já tinha visto em algum programa de televisão e caí na besteira de dizer que ia ser um prazer tê-lo como companheiro de viagem. Ele ficou todo animadinho de ser reconhecido e perguntou se eu sabia qual era seu nome. Entrei em pânico. Mas que merda, porque eu tinha que abrir minha boca. Vasculhei a memória e peguei um flash dele cantando "na BR 3". Eureka. Larguei na lata:
Tony Tornado. A reação foi de um chute no saco, ou um choque de 220 volts. Ele fechou os olhos, encolheu os ombros e me perguntou quanto tempo tinha que eu não via Tony Tornado. Balancei a cabeça e não disse nada, já tinha falado demais. Ele completou que o mesmo devia pesar por volta dos 150 kg, tirou o chapéu me mostrando que tinha todo cabelo e disse que o Tony estava totalmente careca. Falou ainda que o Tony era negro e ele mulato. Como eu continuei de pé esperando ele entrar e não me manifestava ele me estendeu a mão novamente e disse:

- Muito prazer, Emilio Santiago.

Apertei sua mão novamente e falei:

- Minha mulher não vai acreditar que viajei ao seu lado. Ele é sua maior fã e tem todos seu cd's.

Ele muito gentil, me olhou e disse “sei”. 
Acho que não acreditou muito e passamos o vôo todo sem trocar uma palavra. Quando chegamos em São Paulo, ele se despediu rindo e falando: "Tony Tornado", enquanto balançada negativamente a cabeça. 
Acho que frustrei o homem.